Pobres dos Nossos Ricos
Mia Couto
A maior desgraça de uma nação pobre é
que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na
realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é
quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro» dá emprego. Endinheirado
é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o
dinheiro é que o tem a ele.
A verdade é esta: são demasiado pobres
os nossos “ricos”. Aquilo que têm, não detêm. Pior: aquilo que exibem como seu,
é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém,
estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram.
Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitavam de forças policiais à
altura. Mas forças policiais à altura acabariam por lançá-los a eles próprios
na cadeia. Necessitavam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para
a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.
O maior sonho dos nossos novos-ricos é,
afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a
luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O
Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que
estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A
existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza
que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um
movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.
As casas de luxo dos nossos falsos ricos
são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os
olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices,
acabam atraindo alheias cobiças. Por mais guardas que tenham à porta, os nossos
pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas
convocam. O fausto das residências não os torna imunes. Pobres dos nossos
riquinhos!
São como a cerveja tirada à pressão. São
feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é
mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez
disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes
(e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam de ser sustentadas com
dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do
produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador
de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.
Os nossos endinheirados-às-pressas não
se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos.
Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles
imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares
verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são
capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas
não podem comprar o respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem
passear-se nos mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma
tradução de uma mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma
falsificação, uma imitação apressada.
A luta de libertação nacional guiou-se
por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por
outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de
turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar
no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse
relvado chamado “a luta pelo progresso”? Os nossos novos ricos (que nem sabem
explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como
suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país. São nacionais mas só na
aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde
que esses outros lhes agitem com suficientes atractivos acabarão vendendo o
pouco que nos resta.
Alguns dos nossos endinheirados não se
afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a
poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode ir ás
compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos
ricos dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem criancas que entraram numa
loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação.
Servem-se do erário público como se
fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de
cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza.
Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de
proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país.
Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia.
Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem.
Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram
uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a
dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal
bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para realizar esse suicídio
histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro
nesse afundamento.
(Moçambique, Jornal “Savana”. Dez. 2002)
– Mia Couto, texto “Pobres dos Nossos
Ricos”. no livro ‘Pensatempos: textos de opinião’. Lisboa: Editorial Caminho,
2015.
Retirado do Portal ‘Revista Prosa Versoe Arte’
Fonte da foto: https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-silhueta-de-um-homem-triste-com-facas-na-parte-traseira-image84244182
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