O Sínodo Geral da Igreja Anglicana estuda pedir desculpas pela participação da igreja, no passado, no comércio de escravos, devido à celebração do segundo centenário do fim deste comércio. Segundo o reverendo Simon Bessant, da diocese de Blackburn, noroeste da Inglaterra, a igreja deveria "confessar seu pecado perante Deus" e reconhecer sua "participação ativa" na escravidão e o dano causado aos escravos e a seus herdeiros. A Igreja, através de sua filial missionária, foi dona de uma plantação em Barbados.
Os escravos do local eram marcados como gados no peito com a palavra "Sociedade", referente à Sociedade para a Propagação do Evangelho no Estrangeiro. Ainda conforme as palavras do reverendo Simon Bessant, os donos da plantação recebiam uma indenização por libertar os escravos, e de fato o bispo de Exeter recebeu centenas de libras por este motivo.
"Reconheço que uma desculpa agora é difícil porque faz muito tempo que ocorreu, mas a Igreja Anglicana foi parte deste problema e deveríamos reconhecê-lo", disse Bessant.
Aqui no Brasil as igrejas históricas protestantes também estavam envolvidas no "nefando comércio humano". Muitos protestantes, pastores e membros, eram proprietários de escravos que utilizavam como mão-de-obra doméstica ou em alguns empreendimentos. Em 1835, durante a revolta dos escravos malês, ocorrida em Salvador, dos 160 acusados, 45 eram escravos de ingleses residentes no bairro da Vitória. Em testamentos e inventários de anglicanos que morreram na Bahia na segunda metade do século XIX, constatou-se também a presença de proprietários de escravos, tais como os senhores Eduardo Jones que tinha 6 escravos domésticos; o Sr. George Mumford que possuía 11 escravos que trabalhavam na sua roça no Acupe e Sr. George Blandy, que possuía 4 escravos.
A Igreja Anglicana no Brasil foi conivente com o comércio de escravos em que a Inglaterra esteve envolvida desde o século XVI. Houve uma espécie de anuência ou acomodação diante do fato, isto é, por parte de comerciantes anglicanos, sua participação como membros, ao comercializar e possuir escravos. No seu relato sobre o Brasil, o Rev. Robert Walsh, capelão anglicano que acompanhou a missão inglesa do Lord Strangford, entre 1828 e 1829, descreve e opina a respeito da escravidão no Brasil, nada deixou mais chocado o clérigo do que constatar que seus concidadãos ingleses participavam e usufruíam do "nefando comércio", lucrando com a escravização de mulheres e de seus próprios filhos, como presenciou na estrada da Tijuca, no Rio de Janeiro, relata: "ele passa a vender não só a mãe de seus filhos como os filhos propriamente ditos, e com tanta indiferença como se tratasse de uma porca com a sua ninhada".
Os anglicanos da Christ Church, situada no Rio de Janeiro, não só eram donos de escravos, como fizeram batizar nos ritos da Igreja Anglicana os pequenos escravos nascidos em seu poder. Seguindo uma prática dos senhores de escravos brasileiros que batizavam suas peças aos montes, dando-lhes nomes cristãos, os anglicanos também buscaram cristianizar seus escravos. No livro de registros de batismo da Christ Church em 24 de janeiro de 1820, está assentado o batismo de "Thereza, filha de Louisa -escrava negra, nativa de Manjoula, África- propriedade de James Thonton", um comerciante inglês. Em 11 de maio de 1820 foram batizados 11 escravos do fazendeiro Robert Parker. Na Igreja que se reunia em Morro Velho, sua congregação possuía escravos e alguns chegaram também a ser batizados. Há registros de batismos de escravos domésticos de John Alexander em 1830 e do Coronel Skerit em 1833.
Não foram só os Anglicanos coniventes com a escravidão negra no Brasil. Outras igrejas históricas também participaram dela. Os primeiros colonos batistas eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da Senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Os metodistas, defensores dos direitos humanos e da abolição do escravismo na Inglaterra e nos EUA, ao chegarem no Brasil acomodaram-se ao ambiente escravista e quase nada fizeram com repercussão pública, em favor dos escravos. Conforme um estudo sobre o metodismo brasileiro durante o período que antecedeu, ou mesmo depois da "libertação dos escravos," a Igreja Metodista jamais chegou a defender oficialmente sua posição em relação à escravidão no Brasil. Os primeiros Presbiterianos, também sulistas, conservaram-se por muito tempo fiéis à lembrança de sua causa nacional, um destes missionários presbiteriano sulista se havia conservado tão firme em suas convicções que, quando em 1886 o presbiteriano Eduardo Carlos Pereira publicou uma brochura em favor da abolição da escravatura, ele escreveu um verdadeiro tratado anti-abolicionista. Dos luteranos sabemos que os primeiros escravos negros da Colônia Alemã Protestante de Três Forquilhas entraram por volta de 1846, por iniciativa do pastor Carlos Leopoldo Voges. Outros colonos protestantes copiaram seu exemplo (Mittmann, Hoffmann, König, Grassmann, Kellermann, Jacoby, Schmitt e outros).
O fundamentalismo das denominações protestantes dos EUA se transformou em terreno fértil para justificativas da escravidão, que buscavam embasamento doutrinário para apaziguar a consciência dos escravocratas do sul. Citando a história de Noé, identificavam a maldição de Cam, por ter surpreendido o patriarca nu e embriagado, como a maldição dos negros. Os principais agentes da imigração norte-americana para o Brasil foram pastores protestantes do Sul dos EUA, a exemplo do Rev. B. Dunn, que via no Brasil uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados na Guerra de Secessão poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades incluindo a mão-de-obra escrava. Pelo menos cerca de 2000 a 3000 sulistas se deslocaram para São Paulo. O aceno de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava certamente foi decisivo para que famílias inteiras, acostumadas a um estilo de vida escravista, se deslocassem do sul dos EUA para o sudeste brasileiro.
De uma maneira geral os protestantes no Brasil só tomaram uma posição contra a escravidão quando a abolição já era unanimidade na sociedade brasileira. Mesmo os poucos protestantes que se posicionaram favoráveis à abolição o faziam como uma questão moral e religiosa. Eram incapazes de atitudes mais concretas, que de fato propiciassem soluções ao problema do escravismo, que até os nossos dias tem gerado grandes conseqüências, onde grande parte da população negra vive a margem da sociedade. Os negros se viram largados no interior de uma sociedade fundada em bases racistas. Libertos foram preteridos do mercado formal de trabalho em nome de um projeto elitista de branqueamento do país. Tiveram que disputar com o imigrante europeu até mesmo as mais modestas oportunidades de trabalho livre, como a de engraxate, jornaleiro ou vendedor de frutas e verduras, transportadores de peixe e carregadores de sacas de café, etc. As mulheres garantiram a sobrevivência da família trabalhando, tanto ontem como hoje, como domésticas, faxineiras, babás, doceiras, cozinheiras, lavadeiras e outras atividades similares. E a igreja ainda no seu silêncio.
Essa é uma grande oportunidade para denominações evangélicas históricas brasileiras pedirem perdão ao povo negro, seguindo o exemplo dos anglicanos da Inglaterra. O desafio, o testemunho cristão, é o pedido de perdão ao povo negro que aqui propusemos. Finalmente, desejamos convidar nossos irmãos e irmãs das Igrejas Históricas para que reflitam todas essas questões. Para que as igrejas Históricas possam passar de um simples "ministério de omissão" para um ministério de envolvimento e participação na luta do povo negro para a sua libertação, e cumprimento da sua missão de Igreja de Jesus Cristo aqui na terra.
Lista de Igrejas e lideranças a quem enviamos o documento:
IEAB
Ao Sr. Bispo Primaz
Dom Orlando Santos de Oliveira,
A Secretaria Executiva do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil
Sr. Rev. Ludgero Bonilha Morais, Secretário Executivo do SC
Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
Moderador: Rev. Gerson Antônio Urban
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
Diretoria da Assembléia Geral da IPIB
Presidente Rev. Assir Pereira
Igreja Evangélica Luterana do Brasil
A/C Diretoria Nacional Rony Marquardt, Mário Lehenbauer, Carlos W. Winterle, Paulo K. Jung, Moacir Guenther.
Igreja Metodista
Colégio Episcopal
Bispo Josué Adam Lazier - 4a Região
Bispo Paulo Tarso de Oliveira Lockmann - 1a Região
Bispo João Carlos Lopes - 6a Região
Bispo Luiz Vergílio da Rosa - 2a Região
Bispo João Alves de Oliveira Filho - 5a Região
Bispo Presidente a mesa do Colégio Episcopal
Bispa Marisa de Freitas Ferreira Coutinho - REMNE
Bispo Adriel de Souza Maia - 3a Região
Bispo Adolfo Evaristo de Souza - CMA
Reverendo Stanley da Silva Moraes
Secretário Executivo do Colégio
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
Pastor Presidente P. Dr. Walter Altmann
Ao CONIC
Presidente Bispo Adriel Souza Maia
Secretaria Executiva Pr. Ervino Schmidt
CLAI - BRASIL - O Conselho Latino Americano de Igrejas
Secretário Regional: Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira
Bibliografia
O Protestantismo Brasileiro - Leonard, Émile-Guillaume - JUERP/ASTE,1981
CHURCH TIMES - www.churchtimes.co.uk
Revista de Estudos da Religião Nº 1 / 2003
OBS: O autor do texto é Presidente da Sociedade Cultural Missões Quilombo. Texto publicado em 01.02.2006 no site Adital. Endereço: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=20880)
Hernani Francisco da Silva
Fonte: Fim da Farsa
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