O
DIREITO DE RELIGIÃO NO BRASIL
Iso
Chaitz Scherkerkewitz(1)
Sumário:
I
- DA LIBERDADE DE RELIGIÃO
A
Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião,
prescrevendo que o Brasil é um país laico. Com essa afirmação queremos dizer
que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deve se preocupar em
proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa,
proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Deve existir uma divisão muito
acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em geral), não podendo existir
nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e garantia
ao livre exercício de todas as religiões.
É
oportuno que se esclareça que a confessionalidade ou a falta de
confessionalidade estatal não é um índice apto a medir o estado de liberdade
dos cidadãos de um país. A realidade nos mostra que tanto é possível a
existência de um Estado confessional com liberdade religiosa plena (v.g., os
Estados nórdicos europeus), como um Estado não confessional com clara
hostilidade aos fatos religiosos, o que conduz a uma extrema precariedade da
liberdade religiosa (como foi o caso da Segunda República Espanhola).(2)
O
fato de ser um país secular, com separação quase que total entre Estado e
Religião, não impede que tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao
modo como deve ser conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez
que o Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de
todas as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o
fortalecimento da família, estipulação de princípios morais e éticos que acabam
por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou simplesmente pelas
obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições.
Pode-se
afirmar que, em face da nossa Constituição, é válido o ensinamento de Soriano
de que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu
território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas
dos atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do princípio de
igualdade religiosa, mas deve manter-se à margem do fato religioso, sem
incorporá-lo em sua ideologia.(3)
Por
outro lado, não existe nenhum empecilho constitucional à participação de
membros religiosos no Governo ou na vida pública. O que não pode haver é uma
relação de dependência ou de aliança com a entidade religiosa à qual a pessoa
está vinculada. Salienta-se que tal fato não impede as relações diplomáticas
com o Estado do Vaticano, "porque aí ocorre relação de direito
internacional entre dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança,
que não pode ser feita."(4)
A
liberdade religiosa foi expressamente assegurada uma vez que esta liberdade faz
parte do rol dos direitos fundamentais, sendo considerada por alguns juristas
como uma liberdade primária.(5)
Consoante
Soriano, a liberdade religiosa é o princípio jurídico fundamental que regula as
relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fundamental dos
indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças
religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria
religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade
religiosa.(6)
O
jurista americano Milton Konvitz salienta que "If religion is to be free,
politics must also be free: the free conscience needs freedom to think, freedom
to teach, freedom to preach — freedom of speech and press. Where freedom of
religion is denied or seriously restricted, the denial or restriction can be
accomplished — as in the U.S.S.R., Yugoslavia, or Spain — by limits or
prohibitions on freedom to teach, freedom to preach-by restrictions on freedom
of speech and press. Political and religious totalitarianism are two sides of
the same coin; neither can be accomplished without the other."(7), ou
seja, não existe como separar o direito à liberdade de religião do direito às
outras liberdades, existindo um inter-relacionamento intenso entre todas as
liberdades por ele mencionadas (liberdade de ensinança, de consciência,
liberdade de pensamento, de imprensa, de pregação etc.).
Jorge
Miranda também relaciona a liberdade religiosa com a liberdade política. São
suas palavras: "Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões
— compatível, com diversos tipos jurídicos de relações das confissões
religiosas com o Estado — não há plena liberdade política. Assim como, em
contrapartida, aí, onde falta a liberdade política, a normal expansão da
liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada."(8)
É
importante que se perceba que a idéia de liberdade religiosa não pode ser
entendida de uma maneira estática, sem atentar-se para as mudanças de nossa
sociedade. Segundo Soriano: "La libertad religiosa no es lo que fue ni lo
que es hoy; la libertad religiosa es un concepto histórico, como todas las
libertades, que en nuestro tiempo adopta una determinada forma, que no es la
única ni la definitiva. También la libertad religiosa ha passado por varias
etapas que han ido poco a poco enriqueciéndola. Una primera etapa en la que se
reducía exclusivamente a la tolerancia religiosa ante el predominio de un
monopolio religioso confesional: la religión dominante toleraba otros credos
religiosos distintos y ‘falsos’, debido, primero a los imperativos de orden
político, y, después, al reconocimiento de la libertad de conciencia; una etapa
que sustituye a otra del más crudo confesionalismo estatal, intransigente y
militante, representado en Europa por la diarquía del Pontificado y el Imperio,
guardiana de la tradición católica imperante en el continente hasta las luchas
religiosas del Renacimiento. Una segunda etapa de predominio del pluralismo
confesional con el reconocimiento de las distintas confesiones religiosas:
libertad religiosa para las confesiones dentro de un panorama de relativa
desigualdad en el ejercício de las religiones. La libertad religiosa no está
ahora presidida por el signo de la tolerancia en el ámbito de una única,
verdadera y oficial religión del Estado, sino por la aceptación de la
pluralidad de credos dentro del territorio del Estado; con ello el fenómeno
religioso se engrandece y abarca una diversidade de opciones fideístas y la
libertad religiosa se enriquece con la aportación de nuevos horizontes
teológico-doctrinales; pero se trata todavia de un pluralismo moderado, el
pluralismo de las opciones fideístas y del colectivo de los creyentes
exclusivamente. Hay una tercera etapa en la que aún no estamos y cuyos primeros
brotes doctrinales comienzan a aparecer en los momentos actuales, la etapa del
pluralismo religioso íntegro, como la he llamado en otra ocasión, que
representa la inserción de las opciones religiosas no fideístas dentro del
concepto y de la protección de la libertad religiosa."(9)
Para
se falar em liberdade religiosa é importante analisar-se o próprio conceito de
religião, pois conforme ressalta Konvitz, o que para um homem é religião, pode
ser considerado por outro como uma superstição primitiva, imoralidade, ou até
mesmo crime, não havendo possibilidade de uma definição judicial (ou legal) do
que venha a ser uma religião.(10)
Se
não é possível uma conceituação legal do que vem a ser religião, podemos tentar
definir o conceito com apoio na filosofia.
Em
conformidade com as ensinanças de Carlos Lopes de Mattos, religião é a
"crença na (ou sentimento de) dependência em relação a um ser superior que
influi no nosso ser — ou ainda — a instituição social de uma comunidade unida
pela crença e pelos ritos".(11)
Para
o Professor Régis Jolivet, da Universidade Católica de Lyon, o vocábulo
religião pode ser entendido em um sentido subjetivo ou em um sentido objetivo.
Subjetivamente, religião é "homenagem interior de adoração, de confiança e
de amor que, com todas as suas faculdades, intelectuais e afetivas, o homem
vê-se obrigado a prestar a Deus, seu princípio e seu fim". Objetivamente,
religião seria "o conjunto de atos externos pelos quais se expressa e se
manifesta a religião subjetiva (= oração, sacrifícios, sacramentos, liturgia,
ascise, prescrições morais)".(12)
Juan
Zaragüeta, com mais precisão esclarece que "I) La ‘religión’ consiste
essencialmente en el homenaje del hombre a Dios. Pero la precision de esta
definición tropieza con la doble dificultad: 1) de definir el concepto de Dios,
de tan múltiple acepción (véase); 2) de determinar en qué consiste el homenaje
religioso. A) A este propósito cabe distinguir: a) la religión interessada, que
busca a Dios como un Poder superior a los de este mundo, para hacerle propicio
(con oraciones y sacrificios) a los hombres, en el doble sentido de liberarlos
de los males y procurarles los bienes de esta vida; b) la religión
desinteressada, que (sin excluir lo anterior) busca sobre todo a Dios para
hacerle el homenaje — culto interno o mental y externo o verbal y real,
especialmente sacrificial, privado y público (véase) — de la adoración y del
amor de los hombres. B) La religión: a) no moral, que considera a Dios como el
legislador y sancionador, en esta vida o en la otra, del orden moral y
jurídico, y al ‘pecado’ o infracción de este orden (que incluye también el
religioso) como una ofensa de Dios, que quien cabe recabar su perdón a base del
propósito de volver a cometerlo. Las religiones inferiores se caracterizan en
ambos conceptos por atenerse al sentido a) y las superiores al sentido b). Hay
que advertir, sin embargo, que la religión, incluso en el sentido b), se presta
a ser utilizada hasta por los que no creen en Dios y para los demás en el
concepto de A) b), como fuente de consuelo para el alma; y en el concepto B) b)
como auxiliar del orden moral y político (concepto ‘pragmático’ de la
religión). II) Se distinguen también la religión natural y las religiones
positivas, o históricamente existentes; de las que varias pretenden ser
reveladas por Dios con revelación variamente garantizada, y por ende sobrenaturales,
no sólo por el modo de la revelación, sino también por la elevación con ella
del hombre a una condición de intimidad con Dios (la ‘gracia santificante’,
conducente tras de la muerte a la ‘gloria’ o visión beatifica de Dios) que por
su naturaleza no le corresponde; la religión cristiana descuella como tal
religión sobrenatural. Es de advertir que espíritus agnósticos tocante al dogma
de la existencia o cuando menos de la esencia de Dios, no renuncian a la
religión como sentimento o actitud de dependencia respetuosa del hombre del
impe-netrable. Absoluto imanente o transcendente al mundo que nos rodea. De
esta actitud ha derivado el sentido de ‘lo religioso’ hasta a actos de la vida
profana que se entienden ejercidos con una absoluta seriedad o deberes cumplidos
con escrupulosa diligência."(13)
A
liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém
intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade
de culto; e a liberdade de organização religiosa.
Consoante
o magistério de José Afonso da Silva, entra na liberdade de crença "a
liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita
religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também
compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade
de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não
compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de
qualquer crença..."(14)
A
liberdade de culto consiste na liberdade de orar e de praticar os atos próprios
das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento
de contribuições para tanto.(15)
A
liberdade de organização religiosa "diz respeito à possibilidade de
estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o
Estado."(16)
A
liberdade de religião não está restrita à proteção aos cultos e tradições e
crenças das religiões tradicionais (Católica, Judaica e Muçulmana), não havendo
sequer diferença ontológica (para efeitos constitucionais) entre religiões e
seitas religiosas. Creio que o critério a ser utilizado para se saber se o
Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada
organização religiosa não pode estar vinculado ao nome da religião, mas sim aos
seus objetivos. Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do
indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a
prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado.
Por
outro lado, existem organizações que possuem os objetivos mencionados e mesmo
assim não podem ser enquadradas no conceito de organização religiosa (a
maçonaria é um exemplo desse tipo de sociedade). Penso que em tais casos o
Estado é obrigado a prestar o mesmo tipo de proteção dispensada às organizações
religiosas, uma que vez existe uma coincidência de valores a serem protegidos,
ou seja, as religiões são protegidas pelo Estado simplesmente porque as suas
existências acabam por beneficiar toda a sociedade (esse benefício deve ser
verificado objetivamente, não bastante para tanto o simples beneficiamento para
a alma dos indivíduos em um Mundo Superior — os atos, ou melhor, a conseqüência
dos atos, deve ser sentida nesse nosso mundo). Existindo uma coincidência de
valores protegidos, deve existir uma coincidência de proteção.
Devemos
ampliar ainda mais o conceito de liberdade de religião para abranger também o
direito de proteção aos não-crentes, ou seja, às pessoas que possuem uma
posição ética, não propriamente religiosa (já que não dá lugar à adoção de um
determinado credo religioso), saindo, em certa medida do âmbito da fé(17), uma
vez que a liberdade preconizada também é uma liberdade de fé e de crença,
devendo ser enquadrada na liberdade religiosa e não simplesmente na liberdade
de pensamento.
Pontes
de Miranda reforça esses argumentos ao afirmar que tem se perguntado se na
liberdade de pensamento caberia a liberdade de pensar contra certa religião ou
contra as religiões. Salienta que nas origens, o princípio não abrangia essa
emissão de pensamento, tendo posteriormente sido incluído nele alterando-se-lhe
o nome para ‘liberdade de crença’, para que se prestasse a ser invocado por
teístas e ateus. Afirma, por fim, que "liberdade de religião é liberdade
de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade, inclusive
de não se ter."(18)
(1) Procurador do Estado de São Paulo, Mestre e doutorando em Direito pela PUC/SP e Professor Universitário.
(2) SORIANO, Ramón. Las liberdades públicas. Madri: Tecnos, 1990. p. 84.
(3) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 64.
(4) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5 ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 223.
(5) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 62.
(6) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 61.
(7) KONVITZ, Milton R. Fundamental liberties of a free people: religion, speech, press, assembly, 2. ed. New York: Cornell University Press, 1962. p. 5.
(8) MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. v. 4, p. 348.
(9) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 75-76.
(10) KONVITZ, Milton R., ob. cit., p. 49.
(11) MATTOS, Carlos Lopes de. Vocábulo filosófico. São Paulo: Leia, 1957.
(12) JOLIVET, Régis. Vocábulo de filosofia. Tradução de Gerardo Dantas Barreto, Rio de Janeiro: Agir. 1975.
(13) ZARAGÜETA, Juan. Vocábulo filosófico. Madri: Espasa-Calpe. 1955. p. 454.
(14) SILVA, José Afonso da., ob. cit., p. 221.
(15) Idem, ibidem.
(16) Idem, ibidem.
(17) SORIANO, Ramón, ob. cit., p. 76.
(18) PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. v. 5, p. 123.
Link do texto: https://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm

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