Encíclica a quatro mãos indica continuidade, dizem especialistas
Primeira encíclica do Papa Francisco foi divulgada nesta sexta-feira (5).
Documento foi iniciado ainda por Bento XVI, que participou de lançamento.
Nathália DuarteDo G1 São Paulo
Escrita pela primeira vez na história por dois Papas, a encíclica divulgada nesta sexta-feira (5) no Vaticano, intitulada "Lumen fidei" ("A luz da fé"), indica aspectos de continuidade e uma transição linear entre os pontificados de Bento XVI e Francisco. A opinião é compartilhada pelos especialistas Francisco Borba, Fernando Altemeyer Junior e Afonso Soares, ouvidos por telefone pelo G1.
O cardeal Jorge Mario Bergoglio foi escolhido Papa em 13 de março deste ano, depois da renúncia de Bento XVI. Ele se tornou o 266º Papa da Igreja, o primeiro latino-americano e também o primeiro jesuíta. Bergoglio, de 76 anos, escolheu se chamar Papa Francisco, sem o numeral.
Pouco mais de três meses depois de ser escolhido, o pontífice divulgou nesta sexta a sua primeira encíclica. O documento é dividido em quatro capítulos, uma introdução e uma conclusão, e é considerado um dos mais importantes do pontificado.
Para o sociólogo Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), o fato de a encíclica ter sido atribuída também ao Papa Bento XVI simboliza uma transição linear entre os pontífices. “A primeira coisa que chama a atenção é a grande preocupação do Papa Francisco em salientar que a encíclica foi escrita a quatro mãos, apesar de ser ele aquele quem assina oficialmente o documento. Isso é no mínimo surpreendente porque é difícil encontrar um sucessor que se sinta totalmente identificado com o seu antecessor”, disse.
O tema escolhido, ao tratar da fé, também demonstra a forte influência das escolhas de Bento XVI no texto do documento. “Como já se esperava, a encíclica fala sobre a fé, portanto completa o trio com o assunto que faltava entre os documentos escritos por Bento XVI”, diz o teólogo Fernando Altemeyer Junior, do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP. Durante seu pontificado, Bento XVI já havia escrito sobre esperança e caridade.
O documento divulgado nesta sexta diz pouco sobre o futuro da Igreja, segundo o teólogo. “A primeira encíclica é sempre uma plataforma do que o Papa vai fazer, mas esta não é a carta inaugural. Ainda teremos que aguardar um escrito de Francisco. O momento fundamental será o anúncio do novo secretário de Estado, em substituição ao cardeal Tarcísio Bertone. Isso vai definir os novos rumos, assim como o que o Papa vai fazer e dizer em sua visita ao Brasil.”
Outro destaque citado desta vez por Francisco Borba, e que demonstra a presença ideológica de Bento XVI, é a escolha dos três cardeais escolhidos por Francisco para comentar, nesta sexta, o conteúdo da encíclica. O texto foi apresentado pelo Cardeal Marc Ouellet, Prefeito da Congregação para os Bispos; Dom Gerhard Ludwig Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; e por Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização.
“A escolha é um sinal daquilo que está em curso dentro da igreja, um processo que eu chamaria de renovação conservadora. Pode parecer contraditório, mas a postura diz que eles querem uma mudança em que se conservem os valores fundamentais da Igreja”, avalia.
Dos três, segundo Borba, Müller e Ouellet são considerados religiosos sob forte influência do pensamento de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI, e com grande ligação histórica com a América Latina. “Essa encíclica coroa de certa forma o pontificado de Bento XVI. Se pensarmos em uma corrida de revezamento, Bento deixa o bastão para Francisco, porém é claríssimo que se trata do mesmo bastão. Diria, pessoalmente, que a transição agora é mais linear do que ocorreu com o Papa João Paulo II.”
O cientista da religião Afonso Soares, da PUC-SP, considera que haverá uma continuidade no que diz respeito ao dogma e às tradições da Igreja, porém Francisco deve renovar a postura do pontífice e a forma de falar sobre fé com os cristãos. “Ele lança a encíclica no mesmo dia em que reza para São Miguel, o arcanjo que enfrenta o capeta. Nos casos de combate à corrupção, por exemplo, acho que não haverá continuidade nenhuma. Ele quer algo novo, mostra isso em sua postura e seu estilo, mas ele tem uma estrutura velha”, afirma.
Bento XVI e Francisco apareceram juntos durante a inauguração de uma estátua a São Miguel, na praça em frente à sede do Governo do Vaticano.
Família e fé
O sociólogo Borba considera que dois elementos fundamentais da fé católica estão presentes nesta encíclica e já apareciam na primeira encíclica de Bento XVI: a crença de que relação pessoal com Cristo é a base da vida da Igreja, e que a fé ganha o seu sentido pleno dentro do amor.
“O que passava despercebido, torna-se agora evidente. Bento XVI nunca conseguiu se livrar do peso de ter sido Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Ele sempre foi acusado de ser uma espécie de grande inquisidor, mesmo que não tivesse sido, e com isso grande parte da sua mensagem se perdeu. Já Francisco chega como cardeal latino-americano comprometido com o pobre e as pessoas estão mais abertas a sua mensagem.”
A principal referência feita na encíclica, segundo destaca Borba, diz respeito ao amor que dura por toda a vida. “O documento diz que para você aceitar feliz as implicações de amar uma pessoa para sempre, você tem que ter passado pela experiência ser amado para sempre. Não é um sacrifício que se faz pelo outro, mas é resultado de algo que você já recebeu antes”.
A encíclica cita ainda a família como espaço onde a fé é transmitida entre as gerações. “Não é uma discussão sobre o casamento gerar ou não filhos. Fala-se apenas de onde é que a criança adquire a fé. Não existe a mais remota referência ou preocupação, por exemplo, com a questão homossexual”, disse.
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