É provável que a notícia tenha passado despercebida, diante dos frementes acontecimentos dos últimos dias. Talvez os fãs de cinema tenham notado, ao menos aqueles que não se contagiaram pelo belo sentimento de união que vimos eclodir nas ruas de todo o Brasil – mas isto é apenas uma possibilidade. Mas o fato é que Brad Pitt cancelou sua vinda ao Rio de Janeiro no último fim de semana. Soube disso em primeira mão, uma vez que estava me preparando para entrevistá-lo, até que na sexta-feira de manhã veio o e-mail confirmando que o astro não viria mais ao país promover seu novo filme, “Guerra mundial Z” – mais um retrato apocalíptico do fim do mundo (será que todo fim do mundo não é apocalíptico, ou eu divago?), desta vez encarnada por um exército de zumbis (mais sobre o filme, em breve).
O motivo do cancelamento? Você já pode imaginar. A distribuidora diplomaticamente julgou que o momento no país não seria adequado para tal visita, mas não é difícil imaginar que parte da decisão foi tomada por que a segurança do astro estaria comprometida, uma vez que as manifestações legítimas (e algumas poucas ilegítimas – falo, claro, das ações de vândalos) do povo brasileiro não dão sinais de cansaço. (Para quem chega aqui desavisado, lembro que este é um espaço de cultura pop: os eventos recentes, devidamente dentro deste contexto, foram comentados aqui na semana passada, e podem mesmo voltar a ser assunto se cruzar novamente o universo de nossa pauta – hoje, porém, seguimos falando do pop, seja bem-vindo ou bem-vinda; mas se você precisar de uma boa dose de política e belas letras, recomendo o excelente e emocionante texto que li ontem de um dos melhores jovens escritores da nossa nova literatura, Julián Fuks, publicado na “Ilustríssima”).
A agenda de Pitt no Brasil era até modesta: alguns encontros com jornalistas no Morro da Urca, no sábado; um dia de folga aproveitando alguma paisagem luxuriante não muito longe do Rio; e uma presença na pré-estreia de “Guerra mundial Z” hoje, na capital carioca – talvez o compromisso mais provável de se tornar alvo de protestos (não pelo evento em si, mas pela visibilidade internacional que ele geraria). Mas o risco da passagem do astro causar um grande tumulto – não exatamente da maneira que a distribuidora do filme gostaria, com fãs delirantes de Pitt o idolatrando freneticamente ao longo de um provável tapete vermelho – fez com que todos desistissem da empreitada. Não cabe aqui julgar essa decisão – sobre a qual o próprio ator (que, ironicamente interpreta, nesse filme, um ex-funcionário da ONU, do alto escalão, especialista em conflitos políticos em países que atravessam turbulências) certamente também deu seu parecer. O filme provavelmente fará algum sucesso – arrecadou quase 70 milhões de dólares neste seu fim de semana de estreia nos Estados Unidos – e tem méritos suficientes para agradar até este que voz escreve, com sua ferrenha antipatia por qualquer história que envolva zumbis. Mas o que queria comentar aqui hoje é um certo bastidor dessa entrevista, que provocou em mim um desconforto maior do que aqueles “zekes” – o apelido carinhoso que o filme dá aos mortos-vivos.
Praticamente junto com o convite para assistir a “Guerra mundial Z”, recebi também um rico material, com informações sobre a produção, a carreira recente de Brad Pitt, e detalhes da história em geral. Até aí, tudo bem. Mas o que me chamou realmente a atenção foi um anexo que listava as perguntas sugeridas ao astro – todas, como você pode imaginar, bem comportadas. Não que eu tivesse perguntas mal comportadas em mente, mas fiquei ligeiramente perplexo com a transparência de todo a proposta. Não quero nem sugerir que a distribuidora – ou mesmo os agentes do ator – estivessem dando dicas para um repórter (no caso, um com uma certa experiência em falar com personalidades do “show business”). Isso deve ser procedimento protocolar: uma lista de perguntas que eles gostariam que fosse incluídas na pauta (a expressão até é de uso corrente em inglês: “question sheet”) – não me senti nem um pouco “diminuído” profissionalmente com isso. Mas o que me incomodou nisso foi o descaramento com o que o “bom-mocismo” das celebridades agora costuma vir à tona.
A reflexão ficou ainda mais interessante quando vi a entrevista recente de Kanye West ao jornalista e crítico Jon Caramanica, do “The New York Times”. Se você passar (ou mesmo se já passou) os olhos sobre ela, vai ver que a primeira impressão é a de que o cara enlouqueceu. Não que Kanye tenha sempre tido um comportamento exemplar – das megalomanias pessoais ao curioso relacionamento com Kim Kardashian (com quem ele acaba de ter uma filha batizada de, hum, North, ou “Norte” em português), ele nunca deixou de ser histriônico. Mas no “New York Times”, jornal com o qual ele se recusou a falar quando lançou o álbum “My beautiful dark twisted fantasy”, em 2010, ele dessa vez extrapolou.
Para te dar alguns exemplos de suas “aspas”, recorri a uma lista feita pela revista “New York”. Aqui vão eles, na minha tradução sempre apressada:
- “Eu sou sem dúvida, você sabe, o Steve (Jobs) da internet, da cidade, da moda, da cultura. Ponto. De longe. Eu honestamente sinto isso porque o Steve morreu”.
- “Eu tenho tanta credibilidade, sou tão influente e relevante, que vou mudar as coisas”.
- “Eu sou da linhagem de Gil Scott-Heron, dos grandes artistas agitadores. Mas também sou da linhagem de Miles Davis – você sabe, que gosta de coisas bonitas”.
- “Eu serei o líder de uma empresa que ainda vai valer bilhões de dólares, porque eu tenho as respostas. Eu entendo a cultura. Eu sou o núcleo”.
A gente tem que tirar o chapéu: o cara é uma metralhadora de provocações. E por conta disso, a imprensa americana tende a sempre ridicularizá-lo. Mas, como meu ídolo Sasha Frere-Jones perguntou há poucos dias na “The New Yorker”, “por que tanta gente adora se irritar tanto com Kanye West”? Numa lúcida resenha sobre seu novo disco – com o modesto título de “Yeezus” –, Frere-Jones ousadamente lança-se numa defesa do músico: “Numa época em que empresas de relações públicas estão tentando anexar o jornalismo como mais uma ferramenta de promoção, dar uma entrevista esquisita atrás da outra é uma forma de rebelião, fracassando novamente a missão de projetar um profissionalismo insosso”.
Agora responda (e nem precisa ser um jornalista para acertar): entre entrevistar um artista que está programado para respostas totalmente previsíveis para perguntas que ele já aprovou de antemão ou um outro que pode disparar qualquer coisa num encontro que não foi roteirizado – quem você escolheria?
Por compromisso profissional, claro, eu certamente entrevistaria os dois – como já foi o caso nesses “acanhados” 25 anos de profissão. Mas eu não tenho nenhuma dúvida de qual seria a situação mais divertia – nem de qual renderia um material mais interessante. Talvez porque, desde os meus primórdios na MTV Brasil, eu tenha sido acostumado à irreverência das estrelas do rock, é exatamente isso que eu espero de ídolos que são criativos e geniais. Mas, nos últimos tempos, tenho notado uma sutil mudança de comportamento – e não só nas estrelas de Hollywood, mas mesmo nos nossos artistas mais queridos.
Qual foi a última vez que você viu um ídolo seu ser realmente irreverente? Dizer uma coisa inesperada? Lançar – ou mesmo esboçar – uma transgressão? Quando você vê uma dessas superestrelas numa entrevista, pode apostar que ele ou ela está dizendo a coisa mais previsível que você pode imaginar. É sempre alguma coisa para agradar os fãs, para reforçar a “boa imagem” do próprio artista, para passar uma mensagem positiva – enfim, para não dizer nada!
Poucos são os que chegam ao exagero de (nada sutilmente, como Brad Pitt) sugerir perguntas previamente combinadas. Mas não são raras recomendações – sempre lançadas casualmente pelas pessoas em torno do artista (jamais por ele mesmo, ou ela mesma) – de assuntos que ele ou ela não vai falar. Você, quase sempre, quer demais a entrevista – já que certamente aquela celebridade vai te trazer leitores, ouvintes, telespectadores, internautas… – e acaba encarando o esquema (na esperança perene de que a gente consiga fugir dessa armadilha, como às vezes é – se consegui uma espontaneidade de Madonna, tudo é possível!). Mas esse não é problema.
A questão é que os artistas não estão mais a fim de arriscar nada. Os megacantores e cantoras, os superastros das telas, as pessoas que vivem de imagem – tudo na carreira deles hoje em dia envolve tanto dinheiro, que um deslize pode por tudo a perder. Mesmo que isso signifique deixar um compromisso artístico de lado, o que importa mesmo nesses nossos tempos delirantes é agradar. Um “louco” como Kanye West é, infelizmente, uma espécie em extinção. Mesmo no nosso cenário, é só olhar para trás para ver que artistas que nos instigavam não só com sua arte, mas também com suas ideias já não estão mais conosco – pense em Cazuza, Renato, Cássia, e até mesmo Chorão. Ou ainda, tente lembrar de um artista recente que te impressionou numa entrevista – aliás, tente lembrar de algum que fez um pronunciamento relevante sobre os recentes protestos nas ruas pelo Brasil…
Bom, acho que já temos material suficiente para pensar por hoje. Escrevi tanto que acho que seria demais até pedir sua atenção para minha opinião sobre o novo filme de Brad Pitt – então vamos deixar isso para segunda-feira? Até porque, semana que vem pode ser até que eu consiga então fazer uma entrevista com ele – se não no Brasil, num outro canto mais sossegado do mundo. Isto é, se seus assessores não se incomodaram com o que eu disse aqui hoje.
Fonte: Zeca Camargo - G1.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário