problemas elétricos em alojamento do Ninho.
Leo Burlá e Pedro Ivo Almeida
Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo
09/09/2020 04h00
Atualizada em 09/09/2020
21h02
Trocas de emails obtidas pelo UOL
Esporte evidenciam que o Flamengo sabia de riscos em função da precariedade das
instalações elétricas do Ninho do Urubu desde 11 de maio de 2018 - nove meses
antes do incêndio no alojamento do centro de treinamento que matou dez meninos
das categorias de base do clube após um curto-circuito em um dos aparelhos de
ar-condicionado do local.
Correspondências internas trocadas entre
os então responsáveis pelo dia a dia do CT apontaram aos dirigentes do Flamengo
as "não conformidades" das instalações e "suas gravidades",
mostrando que os seguidos autos de infração da Prefeitura não eram os únicos
problemas para o funcionamento do lugar como dormitório.
Os problemas na parte elétrica foram
verificados semanas antes. A partir disso, foi chamado um técnico de segurança
do trabalho do clube para a realização de uma inspeção no local. Tal visita
ocorreu no dia 10, com novo relatório técnico feito no dia seguinte e enviado a
responsáveis rubro-negros.
E-mail com relatório de maio de 2018 Imagem: Reprodução
"A avaliação foi realizada na presença
do Sr Adilson, da empresa CBI, este indicado pelo Sr Luiz Humberto [Gerente de
Administração do Flamengo], sendo comprovado as não-conformidades e suas
gravidades. Conforme a avaliação do Sr Adilson e relatório anterior, a situação
é de alta relevância e grande risco, ficando este de apresentar uma proposta ao
Sr Luiz Humberto para atendimentos emergenciais de alguns pontos: quadro
elétrico (poste ao lado do refeitório), disjuntores e fiação no jardim, quadro
elétrico atrás do alojamento da base", alertou o relatório enviado pelo
funcionário do departamento pessoal Wilson Ferreira ao gerente de administração
do Flamengo, Luiz Humberto Costa Tavares, à gerente de recursos humanos Roberta
Tannure e a um funcionário identificado como Douglas Silva Lins de Albuquerque
em 11 de maio.
Vistoria em 2018 já apontava problemas
elétricos que não foram reparados no alojamento da base no Ninho Imagem:
Reprodução
Com dez fotos e imagens que detalhavam
especialmente as citadas "gambiarras" no quadro elétrico atrás do
alojamento da base (contêineres) - local do incêndio trágico -, o relatório
chamava a atenção pela observação final.
"As irregularidades abaixo não
serão tratadas no momento, pois, conforme informação, o local será demolido e
substituído por novas instalações até o final do ano de 2018, deixando claro
que caso haja fiscalização e autuação o argumento mesmo que evidente não
justifica a irregularidade, ficando a critério do órgão fiscalizador a penalidade
ou intervenção".
O técnico responsável reproduzia o que
ouviu dos funcionários do clube que o acompanharam. A ideia inicial do clube,
ainda durante a gestão de Eduardo Bandeira de Mello, era ter o novo CT da base
ainda em 2018, substituindo as instalações verificadas. Nada feito. As novas e
definitivas instalações não ficaram prontas no tempo planejado. E os jovens
dormiram nos alojamentos precários citados até 8 de fevereiro, dia do incêndio
que tirou a vida de dez jovens.
Relatório apontou diversas falhas nas
instalações elétricas do Ninho do Urubu nas áreas que recebiam os jovens
Imagem: Reprodução
No dia 12, o gerente Luiz Humberto
repassou o documento que detalhava o cenário preocupante ao diretor executivo
de administração do Ninho do Urubu, Marcelo Helman.
"Boa tarde, Marcelo. O técnico de
segurança do trabalho do CRF [Clube de Regatas do Flamengo], em vistoria nas
instalações elétricas do CT, verificou vários itens fora da conformidade com as
normas de seguranças exigidas. Falamos com o Marcelo Sá, que estava no CT, a
respeito dessas instalações (não sabiam se foram feitas pelo patrimônio ou se já
vêm de longa data, no esquema 'faça-de-qualquer-jeito' que os antigos
administradores atuavam). Sá achou por bem solicitar que o Adilson (engenheiro
eletricista que fez a instalação elétrica do CT - que você conhece)
acompanhasse para verificar a real situação e elaborasse, caso seja necessário,
um primeiro orçamento para colocarmos as instalações elétricas em dia. Após o
envio desse primeiro orçamento, pediremos outros mais para compor quadro de
concorrência. Segue abaixo e-mail enviado pelo técnico a respeito do que
encontrou no CT (com fotos). Te manterei atualizado quando o Adilson fizer suas
considerações. Grande abraço. Nos falamos melhor na segunda", finalizou
Luiz Humberto, comunicando à alta diretoria do clube sobre o caso.
E-mail com relatório apontando problemas
foi enviado ao diretor Marcelo Helman Imagem: Reprodução
Reparos elétricos nunca foram feitos
A
empresa CBI fez o orçamento dois dias depois. A previsão era de reparos em até
10 dias a um custo de R$ 8.550,00. Contratada pelo serviço, a empresa emitiu
duas notas fiscais (cada uma no valor de R$ 4.275,00, datadas dos dias 25 de
maio de 2018 e 1º e outubro de 2018), mas o trabalho jamais foi executado.
Essa afirmação é feita pela Anexa
Energia, que foi contratada pelo Flamengo para produzir parecer após a
tragédia. "Para surpresa, em inspeção realizada no local na data de
19/02/2019, verificamos que o objeto do contrato 15.1/18-PA, não havia sido
realizado e as instalações continuavam as mesmas de quando a inspeção fora
realizada, em registros fotográficos antes e depois do evento que culminou na
morte de 10 adolescentes. Podemos perceber que o serviço que a empresa CBI foi
contratada, não foi realizado, mantendo o mesmo alto grau de risco antes
verificado. As tais "gambiarras" elucidadas na proposta, ainda
estavam claramente no local", destacou o relatório de 20 de março de 2019.
Mesmo após o pagamento de outubro e a
verificação de que o serviço não havia sido realizado, o Flamengo não
providenciou novos reparos. E assim o cenário das instalações elétricas
apontado nos relatórios permaneceu. Até o fatídico 8 de fevereiro de 2019.
Orçamento da CBI enviado ao Fla. Reparo
de "gambiarras" nas instalações elétricas do Ninho nunca foi feito
Imagem: Reprodução
Estas peças constam de uma briga
judicial entre Rubro-negro e a Anexa, visto que o clube rompeu o contrato em
vigência sob a alegação de não cumprimento do trabalho, informação contestada
pela empresa. Quando as partes acertaram a prestação dos serviços, a companhia
exigiu acesso a todas as correspondências que detalhassem a rotina do Flamengo
em todo este processo das instalações do seu centro de treinamento.
"Foi autorizada pelo Flamengo a
análise de toda rotina administrativa do clube, na qual foram encontradas
diversos emails, dentre um que mais chamou atenção um no qual um técnico de
segurança do trabalho do próprio clube alertou sobre as péssimas condições das
instalações elétricas e o iminente risco de incêndio, em maio de 2018, para
confrontar com a vistoria técnica realizada pela Anexa em fevereiro de 2019,
logo após o incêndio, para ao final emitir o parecer técnico sobre a possível
causa da tragédia", disse o advogado e representante legal da Anexa,
Carlos Alberto Almeida Moreira da Silva.
Foi a Anexa também quem detectou
irregularidades no sistema elétrico que alimentava os aparelhos de
ar-condicionado dos contêineres que serviam de alojamento para os jovens
mortos. A empresa apontou má conservação, questionou a capacidade da rede para
suportar os mesmos e apontou ainda problemas nos extintores tão logo vistoriou
o local após a tragédia. Os problemas verificados pelo clube em 2018 não haviam
sido reparados.
Relatório da Anexa após o incêndio cita
problemas não reparados desde maio de 2018 Imagem: Reprodução
"O circuito de 10mm² que alimentava
o módulo do alojamento da base, em concordância com o mencionado anteriormente,
estava dimensionado em desacordo com as normas pertinentes, visto a corrente do
disjuntor geral do quadro de cargas ser de 56,7A, entretanto, este mesmo
circuito estava emendado em cabo de 16mm² na entrada da alimentação no
container. Além disso, existiam vestígios de diversas "gambiarras"
conectadas neste mesmo circuito alimentador. Como sabemos, se a emenda não for
executada de forma correta, utilizando conectores apropriados ou materiais
adequados, pode haver um aumento na resistência dos condutores, neste caso,
além de contribuir para o problema de queda de tensão, há também um aquecimento
excessivo no ponto de conexão. O problema de aquecimento no ponto de conexão
foi "potencializado" pelo disjuntor de proteção ser incompatível com
capacidade máxima dos condutores de 10mm² e 16mm², apesar disso, esta questão
poderia ser resolvida se empresa contratada realizasse o serviço que lhe foi
contratado", alertou a Anexa, finalizando que os problemas acabaram
"criando uma sobrecorrente no condicionador de ar (quarto 2) e fazendo com
que a temperatura dos componentes internos, fosse muito elevada, ocasionado o
incêndio”.
Foto em relatório mostra proximidade do
quadro geral de distribuição - com problemas - do alojamento que pegou fogo
Imagem: Reprodução
Gestões Bandeira e Landim não se
entendem no caso
Responsáveis pelo comando do clube no
exercício do ano de 2018, integrantes da alta cúpula de Bandeira de Mello
conversaram com a reportagem e disseram que não foram informados sobre o caso à
época. Ciente de tudo desde o início, o diretor executivo de administração do
CT, Marcelo Helman (foto abaixo), no entanto, tinha trânsito livre com
vice-presidentes, a quem se reportava, e na presidência rubro-negra.
Em fevereiro deste ano, durante
depoimento na CPI que apura o caso na Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro (Alerj), Bandeira já havia batido na tecla de que não tinha ciência
de tudo que ocorria no Ninho do Urubu. "Eu acho perfeitamente crível que o
presidente do clube não soubesse disso", disse à época, se esquivando ao
ser questionado se sabia de autos de infração lavrados no centro de treinamento.
Por outro lado, integrantes da alta
cúpula da atual gestão questionam tal postura e citam o e-mail obtido pelo UOL
Esporte evidenciando que ao menos um diretor executivo do Flamengo à época
sabia das condições precárias e do risco no local.
A reportagem ainda apurou que o comportamento
do executivo Marcelo Helman após o acidente fatal em fevereiro de 2019
incomodou a direção que acabara de assumir o clube.
O entendimento da atual gestão é que
Marcelo poderia contribuir com a compreensão do cenário no centro de
treinamento, o que acabou não acontecendo. O diretor repetia que não tinha
informações sobre documentos, relatórios e rotina do Ninho, local onde era chamado
até de "prefeito".
Marcelo Helman (segundo, da dir. para a
esq.) era o responsável pelo Ninho na gestão de Bandeira de Mello (e) Imagem:
Divulgação
O tal prefeito, no entanto, era visto
poucas vezes no CT, ainda que fosse o principal responsável do lugar. Em uma
reunião após o incêndio, Helman ainda debochou. "Não sei o que estou
fazendo aqui, poderia estar na praia", disse, no encontro com outros
diretores e membros da cúpula realizado em 10 de fevereiro de 2019. Foi o
estopim para que o presidente Rodolfo Landim não o quisesse mais no clube.
Contudo, com receio de demitir o
executivo em meio a investigações e configurar um apontamento de culpa no caso,
Landim foi orientado a mantê-lo no quadro de funcionários rubro-negro. O
presidente ordenou que Helman não aparecesse mais nas dependências do clube,
mesmo recebendo o salário de cerca de R$ 60 mil até junho daquele ano, quando
foi oficialmente desligado em meio a uma leva de demissões no Flamengo.
Procurado pela reportagem, o clube
rubro-negro informou que não se manifestaria sobre as informações relativas aos
emails de 2018 e seus desdobramentos. Marcelo Helman não foi localizado até o
fechamento da reportagem. A empresa CBI também não teve nenhum representante
encontrado até a publicação da matéria.
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