Em
áudios, integrantes do Superior Tribunal Militar relatam casos de tortura
durante ditadura
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foi publicado neste domingo (17) pela jornalista Míriam Leitão, colunista de 'O
Globo'. Ao todo, são mais de 10 mil horas de gravações; áudios foram analisados
pelo historiador Carlos Fico.
Por
Filipe Matoso, g1 — Brasília
17/04/2022
11h14 Atualizado há 2 anos
Áudios
de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) publicados neste domingo (17)
pela jornalista Míriam Leitão, colunista do jornal "O Globo", mostram
relatos de tortura durante o período da ditadura militar (1964-1985).
Ao
todo, são mais de 10 mil horas de gravações, e os áudios foram analisados pelo
historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nos
áudios, por exemplo, um general defende a apuração do caso de uma uma grávida
de 3 meses que sofreu aborto após choques elétricos na genitália; e um ministro
denuncia uma confissão de roubo a banco obtida a marteladas – o suspeito estava
preso à época do crime (leia detalhes mais abaixo).
O
g1 tentou contato com as assessorias do Exército e do Ministério da Defesa, mas
não conseguiu até a última atualização desta reportagem.
Neste
domingo, o presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, Humberto
Costa (PT-PE), informou que solicitará acesso aos áudios, para tomada de
possíveis providências.
"A
exposição das gravações em que ministros do STM admitem tortura é uma assunção
cabal do Estado sobre tudo o que cometeu durante o regime militar",
declarou o petista em uma rede social.
Em
entrevista a "O Globo", Carlos Fico explicou que, em 2006, o advogado
Fernando Fernandes pediu ao STM acesso às gravações, mas não conseguiu e,
então, acionou o Supremo Tribunal Federal, que determinou a liberação do
conteúdo. O STM, porém, acrescentou Fico a "O Globo", não obedeceu a
decisão e, em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos
autos, decisão posteriormente referendada pelo plenário.
Por
telefone, o professor informou ao g1 que desde 2018 analisa os áudios e já está
na metade do processo, o que abrange o período entre 1975 e 1979. Carlos Fico
acrescentou ainda que, embora algumas pessoas tentem negar que houve tortura na
ditadura, cabe aos historiadores apresentar a história como ela é.
"Quando
a gente vive tempos traumáticos, algumas pessoas tendem a criar memórias que as
apaziguem com o passado. Outra coisa é a história. Não há dúvida que houve
tortura, isso é óbvio. É até um pouco reiterativo, repetitivo dizer que houve
tortura. Houve. Ponto final. Claro que houve. Outra coisa é a memória que
algumas pessoas constroem, de negação da tortura", disse o historiador.
Em
dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um relatório no qual
responsabilizou 377 pessoas por crimes cometidos durante a ditadura, entre os
quais tortura e assassinatos. O documento também apontou 434 mortos e
desaparecidos na ditadura; e 230 locais de violações de direitos humanos.
Em
manifestação divulgada na ocasião, o Clube Militar chamou o relatório de
"coleção" de "calúnias" e de "absurdo".
Ouça
os áudios
Saiba
trechos contidos nos áudios revelados pelo jornal "O Globo":
CHOQUE
ELÉTRICO LEVOU MULHER A SOFRER ABORTO
Em
um trecho revelado pelo jornal "O Globo", o general Rodrigo Octávio
afirma em 24 de junho de 1977, durante o julgamento da Apelação 41.048 que
"fato mais grave" suscita a análise da apelação. Ao descrever o
assunto a ser julgado, o militar revela que "alguns réus"
apresentaram "acusações referentes a tortura e sevícias das mais
requintadas".
Descreve
ainda o general que, conforme esses réus, uma mulher grávida de 3 meses sofreu
aborto após "castigos físicos" no Doi-Codi, órgão militar da
ditadura. Relata também que, conforme o marido dessa mulher, ela sofreu
"choques elétricos em seu aparelho genital".
"Na
defesa das salvaguardas dos direitos e garantias individuais, expresso no
artigo 153, parágrafo 14 da emenda constitucional 69, como consequência não só
de nossa evolução política, lastreada em secular vocação democrática e formação
humanística, espírito cristão, com o compromisso assumido na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, aprovado em resolução da terceira sessão
ordinária da Assembleia das Nações Unidas, tais acusações, a meu ver, devem ser
devidamente apuradas através de competente inquérito, determinado com base no inciso
21 do artigo 40, da lei judiciária militar, Decreto Lei 1.003 de 69",
afirma o general.
"É
preciso que se evidencie de maneira clara e insofismável que o governo, através
das Forças Armadas e dos órgãos de segurança, não pode responder pelo abuso e a
ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para
obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando,
em sua limitação cerebral, que estão bem servindo à estrutura política e
jurídica regente, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana,
ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado
de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança,
criados na consecução honesta e urgente dos objetivos revolucionários",
acrescenta.
'CONFESSO
QUE COMEÇO A ACREDITAR NESSAS TORTURAS'
Em
um trecho dos áudios revelados neste domingo pelo jornal "O Globo", o
ministro togado Waldemar Torres da Costa afirma em 13 de outubro de 1976
durante o julgamento da Apelação 41.229: "Começo a pedir a atenção dos
meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das
Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser
provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a
acreditar nessas torturas porque já há precedente. "
'PRATO
PARA OS INIMIGOS DO REGIME'
Seis
dias depois, em 19 de outubro de 1976, o almirante Julio de Sá Bierrenbach
afirma durante o julgamento da apelação 41.264: "Quando aqui vem à baila
um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do
regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e
os correspondentes os jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é
assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas
publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil,
generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens".
E
acrescenta o almirante: "Não podemos admitir é que o homem, depois de
preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na
maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado."
'MARTELADAS'
Antes
desses julgamentos, ainda em 15 de junho de 1976, o ministro togado Amarílio
Lopes Salgado já havia dito durante o julgamento da Apelação 41.027 que um
homem suspeito de assaltar dois bancos estava preso quando houve um outro
assalto e acabou confessando o crime após receber "marteladas".
"É
que ele [suspeito] alega que [...] esse [outro assalto] ele não podia [ter
cometido] porque estava preso. 'Eu estou preso, estava preso na Ilha Grande'.
Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador-geral
porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital e citou o nome das duas
pessoas que martelaram ele. [...] Eles podem negar, mas que os nomes dos dois
estão aí, estão. É fulano e beltrano. Martelaram esse moço, daí a confissão
dele. Em juízo, ele confessa que não podia: 'Eu estava lá na Ilha Grande', no
dia 26. 'No dia 30, eu fugi e assaltei o banco tal no dia 31 e no dia 4
assaltei outro banco, mas no dia 26, não'. As declarações dele são longas, acho
que no acórdão devia ser feito menção a isso."
'GRANDE
CONSTRANGIMENTO'
Cerca
de dois anos depois, em 9 de junho 1978, o general Augusto Fragoso pede a
palavra durante o julgamento da apelação 41.593 e diz que, como único
representante do Exército na ocasião, sentiu "grande constrangimento"
ao saber de acusações que, para ele, "não foram apuradas
devidamente".
" Eu,
nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35,
nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho
que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente ser
recolher aos afazeres profissionais", afirmou.
SUBVERSÃO
Durante
a sessão de 19 de outubro de 1977, o brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira
afirma que um ministro disse que o tribunal não poderia receber
"indiscriminadamente toda e qualquer suspeita de sevícia", sob pena,
segundo esse ministro, de o STM comprometer "aqueles que, de boa fé, com
idealismo e patriotismo, se contrapõem à subversão".
EXAME
DE CORPO E DELITO
Na
sessão de 15 de fevereiro de 1978, o Brigadeiro Faber Cintra afirma durante o
julgamento da Apelação 41.648, que, se as lesões tivessem acontecido,
"seriam facilmente constatadas" por meio de exame de corpo e delito.
"As
lesões sofridas, caso acontecessem, seriam facilmente constatadas através do
exame de corpo e delito ou mesmo laudo médico particular, posto que nenhum dos
acusados foi mantido preso por prazo superior ao previsto em lei. As alegações
dos acusados em juízo, no sentido de que sofreram coações morais e físicas, não
podem ser consideradas, pois desprovidas de qualquer elemento probatório por
mais simplório que fosse um laudo médico particular que à época constatasse
qualquer lesão, mesmo superficial do acusado. "
'ELES
APANHAM MESMO'
Em
um dos áudios publicados pelo jornal "O Globo" neste domingo, uma
pessoa não identificada se apresenta como revisora da Apelação 41.027, julgada
em 16 de junho de 1976. Na gravação, essa pessoa diz que um investigado que
"não tinha nada a ver com história" foi indiciado.
Diz,
então, que "muitas vezes" o inquérito policial é desacreditado porque
as pessoas "apanham mesmo" durante as investigações.
"Eu
sou revisor de um processo que aparece que eram quatro indiciados no inquérito,
todos eles confessaram direitinho na polícia que tinham tomado parte. Uns
acusaram os outros, mas na ocasião do sumário ficou provado que um deles não
tinha nada a ver com a história. Esse trabalhava direitinho. Por que razão ele
havia confessado? E ele disse: 'Ou a gente confessa ou entra no pau'. E é o que
está acontecendo. Entrou dessa vez, e muita gente tem entrado, por isso que
muitas vezes a gente acha que o inquérito na polícia não tem valor, por causa
desses casos, desses casos. Eles apanham mesmo. Por isso, quando vejo um
inquérito na polícia eu fico logo com um pé atrás."
ÁUDIO
DE ADVOGADO
Além
dos áudios de integrantes do STM, "O Globo" também publicou o trecho
em que o advogado Sobral Pinto afirma, em 20 de junho de 1977, durante o
julgamento da Apelação 41.301, que há casos de tortura.
"Os
senhores ministros não acreditam na tortura. É uma pena que não possam
acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha para ver
como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse processo, senhores juízes
há prova documental da tortura que sofreu Marco Antonio. Há um laudo firmado
por médicos militares atestando essa tortura. O ilustre eminente advogado de
Marco Antonio, doutor Mario Simas, vai mostrar aos senhores ministros esse
documento", afirma Sobral Pinto.
Marco
Antonio Tavares Coelho, informou "O Globo", havia sido condenado a
cinco anos.
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