Traduzindo
o julgamento: o voto do ministro Luiz Fux, suas metáforas e referências
Ministro
usou as metáforas da girafa e da luva em seu voto. Fux também recorreu a
autores clássicos e modernos do direito penal para fundamentar seu pensamento.
Por
Pedro Kenne
11/09/2025
08h31 Atualizado há 56 minutos
Em
seu longo voto no quarto dia de julgamento da Ação Penal 2668, o ministro Luiz
Fux usou metáforas e recorreu a autores clássicos e modernos do direito penal
para fundamentar a sua discordância quase total em relação aos ministros que
abriram a discussão.
METÁFORAS
Ao
falar da sequência de eventos, o ministro disse que a extensão do percurso
criminoso (o “iter criminis”, como se diz) desde os fatos do processo
eleitoral, passando pela “operação Punhal Verde-Amarelo” e chegando ao 8 de
janeiro de 2023 se assemelhariam a uma “girafa”.
Para
Fux, os atos cometidos durante o processo eleitoral e a denominada
"operação Punhal Verde e Amarelo" formariam o corpo da
"girafa" e, mais afastado, o 8 de janeiro de 2023 seria a cabeça da
girafa, separada dos demais por um longo pescoço.
O
ministro questionou a vinculação dos atos de 8 de janeiro com o restante da
narrativa. E, ao falar sobre a tipicidade (que é o “encaixe” de um fato
praticado com o crime descrito na lei), lembrou da metáfora do jurista Evaristo
de Moraes, para o qual o fato deve encaixar-se na previsão legal como uma mão
encaixa em uma luva.
VOTO
LONGO
Julgamentos
longos não são incomuns no direito. Em geral, porém, a maior parte é ocupada
com outras partes dos procedimentos, e não com a fundamentação da decisão dos
juízes.
No
Tribunal do Júri, por exemplo, é possível que durem dias os trabalhos, durante
os quais os 7 jurados devem ficar incomunicáveis; até mesmo pela dificuldade de
isolar essas pessoas, os julgamentos então ocorrem em dias corridos, podendo
levar mais de uma semana.
No
recente caso da morte de Genivaldo de Jesus Santos, o julgamento dos policiais
envolvidos levou 12 dias. No caso do mensalão (Ação Penal 470), alguns votos
levaram dias para serem proferidos, e o julgamento paralisou o STF por semanas,
levando, inclusive, à alteração do regimento que deslocou o julgamento de ações
penais para as Turmas.
RECONHECEU
A INCOMPETÊNCIA, MAS CONTINUOU JULGANDO?
O
julgamento no STF poderia se dar em duas etapas: primeiramente as preliminares,
com todos os votos sobre essas questões, e depois o mérito, a decisão sobre
condenação ou absolvição. O roteiro, porém, foi estabelecido com os ministros
já dando seus votos sobre todas as questões.
O
voto do ministro Fux reconheceu a incompetência do STF; mas, caso vencido nessa
parte, ele pode votar com relação ao mérito da ação penal. Por essa razão, já
adiantou seus votos sobre a responsabilidade individual.
Com
relação a Alexandre Ramagem, porém, preferiu considerar “prejudicada” a
discussão sobre sua culpa, pois votou para suspender a ação em razão da decisão
da Câmara dos Deputados.
Em
maio deste ano, como possibilita a Constituição, a Câmara aprovou por 315 votos
a 143 a suspensão da ação penal com relação a ele, que é parlamentar em
exercício.
'ABSORÇÃO'
DO CRIME DE TENTATIVA DE GOLPE DE ESTADO
Fux
entendeu, ao contrário de Moraes e Dino, que o crime de tentativa de abolição
do Estado Democrático de Direito “absorve” o crime de tentativa de golpe de
estado.
Na
lei penal, há muitos crimes que estão contidos em outros; na hora de aplicar o
direito, há sempre um cuidado para que se defina qual é exatamente o crime com
base no qual deve ser feita a avaliação do caso.
Um
exemplo seria o crime de ameaça e o crime de roubo: todo roubo tem uma
violência ou uma grave ameaça, mas que são praticadas com a finalidade de tomar
um bem de alguém. Nem por isso, essa violência ou essa ameaça serão punidas
como um crime à parte: apenas o roubo será analisado.
Aí,
em direito, diz-se que o roubo “absorve” a ameaça. Fux entendeu que os atos que
a acusação identificou como sendo de tentativa de golpe de estado teriam sido
praticados, em realidade, como parte de uma tentativa de abolição do Estado
Democrático de Direito, e julgou os réus apenas com relação a esse último.
A
maior repercussão prática disso é em relação às penas: se fossem considerados
os dois crimes, elas seriam somadas, e estamos falando de penas de 4 a 12 anos
de prisão para o crime considerado “absorvido”.
ANÁLISE
INDIVIDUALIZADA E CONDENAÇÃO DE BRAGA NETTO E MAURO CID
Fux
afirmou fazer uma análise da conduta de cada réu com relação ao que estaria
provado nos autos. Isso foi a justificativa para condenar Braga Netto e Mauro
Cid, e não os demais réus, embora todos estivessem implicados nas condutas
narradas pela acusação.
Afirmou
que não há como responsabilizar “solidariamente” no direito penal; a
responsabilidade “solidária” é um conceito do direito civil, pelo qual pessoas
respondem pela totalidade de algo independentemente da proporção em que tenham
participado.
No
direito penal, prevalece a responsabilidade individual, dita “subjetiva”, com
base na proporção da culpa de cada um. Ao analisar a situação dos demais réus,
o ministro entendeu que suas participações não passaram da fase dos “atos
preparatórios”, não entrando na fase de execução dos crimes – e mesmo os crimes
de tentativa exigem que essa fase seja iniciada.
HISTÓRIA
DO DIREITO PENAL E 'TEORIA DO DELITO'
Ao
longo da manifestação, as várias fases do direito penal moderno foram
lembradas. O milanês Cesare Beccaria foi o fundador da ciência penal, e
escreveu, no século XVIII, baseado nos princípios dos filósofos que animariam a
Revolução Francesa no final daquele século, uma pequena obra que tem
repercussões até hoje, “Dos Delitos e Das Penas”.
Foram
ainda lembrados autores de diversas fases da evolução da “teoria do delito”
moderna. A teoria do delito é a parte do direito penal que cuida de
sistematizar a análise do reconhecimento de um fato como sendo (ou não) crime e
a análise da relevância da participação de alguém em um fato criminoso.
Conceitos como tipicidade e causalidade são do domínio da teoria do delito.
A
teoria do delito teve impulso sobretudo a partir do final do século XIX, com
autores como os citados Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach e Karl Binding,
muito lembrados quando se conta a história do desenvolvimento da ideia de “bem
jurídico” – hoje, só se considera que existe um crime quando algo importante é
ameaçado ou violado.
O
“bem jurídico” protegido pelo crime de homicídio, por exemplo, é a vida; o “bem
jurídico” protegido pelo crime de furto é o patrimônio, e assim por diante. Nos
crimes de tentativa de golpe de estado e de tentativa de abolição violenta do
Estado Democrático de Direito, o bem jurídico protegido é o Estado Democrático
de Direito.
Fux
ainda lembrou de Hans Welzel, que trouxe o “finalismo” na década de 1930 para o
campo das ideias penais. Essa corrente de pensamento até hoje predomina no
nosso direito penal, e o Código Penal tem, em suas regras de interpretação,
forte influência finalista.
Para
esse jurista, a ação humana é baseada em objetivos traçados (a ação é “final”
ou “finalística”), de modo que não se deve somente observar o que ocorreu, mas
sim o que pretendia o agente. Essa ideia, que hoje parece clara, não era tão
evidente à época, e permitiu, por exemplo, o melhor desenvolvimento da punição
das tentativas de crimes.
Seguindo,
Fux ainda citou Claus Roxin, alemão falecido em 2025 e de grande impacto no
direito penal, com teorias que trouxeram contribuições à base finalista
existente. Citou também o espanhol Jesús-María Silva Sánchez e brasileiros como
Nelson Hungria, ex-ministro do STF e grande nome do direito penal brasileiro.
***Ao
longo do julgamento da trama golpista, o g1 vai contar com o auxílio dos
juristas Pedro Kenne e Thiago Bottino para traduzir termos complicados do mundo
jurídico, esclarecer as principais divergências e pontuar manifestações
relevantes.
***Pedro
Kenne é procurador da República, doutorando e mestre em Direito Penal (UFRGS) e
especialista em Direito Público (ESMPU).
Link
da reportagem: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/09/11/traduzindo-o-julgamento-o-voto-do-ministro-luiz-fux-suas-metaforas-e-referencias.ghtml
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