ANÁLISE
Contextualiza um acontecimento e aprofunda a compreensão de
seus diversos ângulos
Gay e presidenciável, Eduardo Leite faz ato político de
coragem equilibrista
'Sou um governador gay, e não um gay governador', disse
governador do Rio Grande do Sul
Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos
humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP.
Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e
discriminação.
Vídeo de Eduardo Leite no Programa: https://globoplay.globo.com/v/9653100/?s=0s
Assistir à entrevista: https://globoplay.globo.com/v/9653481/?s=0s
“Eu sou gay”, disse Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio
Grande do Sul na última quinta (01). E repete: “eu sou gay”, na segunda vez com
um leve sorriso, quiçá de alívio. Há uma beleza no ato que quaisquer diferenças
políticas não são capazes de dissipar, ou não deveriam ao menos.
É um erro trivializar o feito de Eduardo Leite: é
libertador, pessoalmente, e custoso, politicamente, assumir-se LGBT+ num país
governado por um presidente homofóbico.
Presidente, aliás, a quem Leite (o candidato a governador)
ajudou a eleger junto com outros 29% de LGBTs que apoiaram Bolsonaro, segundo o
Datafolha pré-eleitoral, e de quem Leite (o presidenciável) agora procura se
distanciar ao denunciar na justiça sua homofobia, que, convenhamos, sempre foi
patente.
E aqui começam as complexidades; saber transitá-las faz
parte da maturidade intelectual da qual não podemos nos furtar. Vamos ponto por
ponto.
Primeiro, intersecção entre classe, raça e orientação
sexual: Eduardo Leite assume ser um político LGBT+ com a naturalidade
conquistada com muito suor e sangue por quem ainda sofre por não se enquadrar,
em maior ou menor grau, ao ideal socialmente imposto (branco, masculino, rico,
homem e heterossexual).
Heteronormatividade soa como um palavrão, mas indica apenas
quais corpos são mais ou menos aceitos pela sociedade, inclusive entre LGBTs.
Indica, inclusive, por que esquecemos quem é Kátia Tapety, primeira política
transexual eleita em 1992, ou porque muitas políticas lésbicas hoje estejam no
armário ainda.
O país que aceita cada vez mais a homossexualidade
(crescimento de 61% a 67% entre 2013 e 2019) é o mesmo país que mais mata
travestis e transexuais (alta de 41% em 2020, segundo a ANTRA, sendo a grande
maioria negras) e vê índices de violência sexual e física contra mulheres
lésbicas invisibilizados.
Não é de hoje que há disputas internas entre LGBTs, seja
pessoalmente (LGBTs são indivíduos e pensam diferente), seja como movimentos. A
história dos movimentos LGBTs aqui e nos EUA pode ser contada por meio de
consecutivas cisões internas e busca por reconhecimento dentro da sopa de
letrinha.
Basta lembrar o esporro que uma das líderes da revolta de
Stonewall de 1969, Sylvia Rivera, transgênero e porto-riquenha, deu aos homens
brancos na parada de Nova York de 1973: “Há um lugar para mim na mesa? (...)
vocês já foram estuprados e presos? É melhor que vocês fiquem quietos”. Ela foi
vaiada.
Paradas hoje só existem por conta de pessoas como Sylvia
que se jogaram contra a polícia em Stonewall, tanto quanto Leite só pode hoje
se assumir por conta das mulheres lésbicas que quebraram tudo no Ferro’s Bar em
São Paulo em 1983 ou das pessoas trans que resistiram às prisões arbitrárias
nas rondas policiais nos anos 70, ou dos gays que fundaram a pioneira
publicação Lampião em 1978, cujo primeiro editorial afirmava “é preciso dizer
não ao gueto e, em consequência, sair dele.”
Segundo, olhemos com atenção o tom do anúncio de Eduardo
Leite: “Sou um governador gay, e não um gay governador, tanto quanto [Barack]
Obama nos Estados Unidos não foi um negro presidente, foi um presidente negro.
E tenho orgulho disso.”
Aqui, Leite pratica o que o professor de Yale, Kenji
Yoshino, chama de “covering”: minimiza a importância de uma identidade
socialmente discriminada para ser mais aceito na sociedade.
Yoshino localiza “covering” como a terceira fase na luta
por direitos, após LGBTs terem sido submetidos a torturas físicas e
psicológicas chamadas de cura gay (“conversing”) e depois permanecerem no
armário (“passing”).
Logo após a fala do governador, bolhas no Twitter começaram
rapidamente a ridicularizar a expressão “sou um governador gay, e não um gay
governador”, sem entender a complexidade da mensagem política aqui: Leite apela
para uma passibilidade política, ao sair do armário ao mesmo tempo em que
minimiza o determinismo de sua identidade.
Isto é em uma pílula a chave para uma identidade LGBT à
direita: sou, mas não importa politicamente; que é o oposto de uma identidade
LGBT à esquerda: sou e, por isso, importo politicamente.
Quem não entendeu isso pouco entendeu o que a referência a
Obama deixou evidente: Obama é um presidente negro que fez pouco uso retórico
de sua negritude, o que o faz ser qualificado à esquerda de pós-racial, da
mesma forma que o ex-presidenciável Pete Buttigieg dissolvia sua orientação
sexual, sem escondê-la, em outras credenciais, como veterano de guerra.
Ingressar nesta retórica da passibilidade permite a Leite
afirmar ser contra o autoritarismo moral, ao mesmo tempo em que flerta com o neoliberalismo
guedesiano que precariza direitos, sem grandes dissonâncias cognitivas.
Assumir publicamente sua orientação sexual é, ao mesmo
tempo, um ato pessoal e político, e Leite navegou de forma calculada entre as
duas esferas. De fato, a naturalidade da fala de Leite é um atestado do atual
estágio das coisas em partidos de centro e de direita no país.
Pesquisas como a do cientista político Gustavo Gomes da
Costa desmistificam algumas distorções consolidadas no imaginário político
brasileiro.
Se é verdade que foi em partidos de esquerda, em especial
PT e depois PSOL, que a pauta LGBT mais se consolidou, isto não apaga a
resistência inicial de militantes de esquerda a abraçar LGBTs (seja na década
de 1970, vendo-os como sintoma de uma decadência burguesa; seja hoje criticando
o que alguns chamam de identitarismo).
Se é verdade que partidos de centro e de direita no país ou
ignoraram a pauta LGBT ou abertamente se opõem historicamente a ela, isto não
apaga o fato de que, tardiamente em relação à esquerda, estes partidos têm cada
vez mais incluído grupos LGBTs em seus quadros (PSDB possui o
DiversidadeTucana) e têm proposto candidatos LGBTs (40% das candidaturas trans
em 2020 foram de partidos de direita).
Lembro aqui de James Baldwin, autor gay e negro que odiava
ser assim enquadrado (ou para ele reduzido). Escreveu em 1955: “Quando
negligenciamos, negamos, escamoteamos sua complexidade —que nada mais é do que
a inquietante complexidade que caracteriza todos nós—, somos diminuídos e
perecemos; é somente dentro dessa teia de ambiguidades e paradoxos, dessa fome,
desse perigo e dessa escuridão, que podemos encontrar ao mesmo tempo nós mesmos
e o poder que nos libertará de nós mesmos”.
Eduardo Leite nos lembra que sair do armário é um ato,
concomitantemente, pessoal e político: pessoal posto que corajoso e libertador,
político porque nos joga no mundo completos; o que fazemos com isso —normalizar
este mundo ou transformá-lo– é o que importa.
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