Primeira
prisão de Lula completa 40 anos
Lula
permaneceu 31 dias detido no Dops de São Paulo com outros dirigentes sindicais.
19.abr.2020
às 20h02 UOL São Paulo
Camilo
Vannuchi
Fotografia
oficial e prontuário preenchido por Lula quando preso no Dops de São Paulo, em
abril de 1980. Imagem: DEOPS-SP/Reprodução - Imagem: DEOPS-SP/Reprodução
Na
manhã de 19 de abril de 1980, duas veraneios C14 com oito agentes armados
estacionaram em frente à casa de Luiz Inácio da Silva, então presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, na Grande São
Paulo. Enquadrado na Lei de Segurança Nacional por promover greve e incitar
publicamente à "subversão da ordem político-social" (conforme os
artigos 32 e 33 do decreto-lei 314 de 1967), Lula permaneceu 31 dias detido no
Dops de São Paulo com outros dirigentes sindicais.
Nesse
período, perdeu a mãe, Dona Lindu, fez greve de fome a contragosto e comeu lula
a dorê servida pelo delegado Romeu Tuma. Dona Marisa liderou uma grande
caminhada de mulheres pelo centro de São Bernardo, Dom Paulo Evaristo Arns
celebrou missa na Sé em apoio aos presos e Chico Buarque gravou um compacto com
a música "Linha de Montagem" e doou os direitos autorais de autor e
intérprete para o fundo de greve. Os detalhes daquelas semanas de abril e maio
estão narrados em um dos capítulos do livro "Marisa Letícia Lula da
Silva", que lancei em fevereiro pela Alameda Casa Editorial. Confira um
trecho a seguir.
Faltavam
alguns minutos para as seis horas da manhã do dia 19 de abril de 1980, um
sábado, quando bateram palma.
—
Senhor Luiz Inácio da Silva! Senhor Luiz Inácio da Silva!
A
voz vinha da calçada, colada à janela do quarto. Marisa despertou assustada
após uma noite em que mal pregara o olho.
—
Senhor Luiz Inácio da Silva, Lei de Segurança Nacional!
Chacoalhou
o marido.
—
Lula, Lula, estão atrás de você!
O
marido resmungou qualquer coisa e virou para o outro lado. Marisa alcançou
algo que pudesse vestir e foi até a sala, onde o deputado estadual Geraldo
Siqueira dormia no sofá́.
—
Tem alguém aí – ela o acordou. — Chamaram o nome do Lula.
Frei
Betto abriu a porta do segundo quarto, foi até a entrada e se apresentou.
—
Um instante, vou chamar o Lula. Fechou a porta e foi ajudar Marisa a
acordá-lo.
Orientou
Geraldinho:
—
Vai lá fora e pede pra ver o mandado de prisão.
Frei
Betto e Geraldinho haviam se mudado para a casa de Marisa e Lula no dia 15,
logo após o tribunal decretar a ilegalidade da greve. A hipótese de prisão
era cada vez mais real, e a presença de um parlamentar e um religioso poderia
trazer alguma segurança a Lula e sua família num momento em que
arbitrariedade e truculência eram marcas da repressão. Como os dois não eram
casados nem tinham filhos, abraçaram a missão proposta pelo frade sem que a
mudança lhes causasse desconforto. Frei Betto ficou no quarto onde dormiam as
três crianças, enviadas às pressas para uma temporada nas casas das tias.
Geraldinho se instalou no sofá da sala.
Ficou
acertado que, quando a prisão acontecesse, os dois correriam para o telefone e
acionariam suas redes a fim de denunciar imediatamente a detenção de Lula:
Igreja, Legislativo, organizações de Direitos Humanos, advogados,
jornalistas. A divulgação em todos os jornais era a única arma capaz de
garantir a integridade física do preso e obrigar a Secretaria de Segurança
Pública a oficializar seu paradeiro. Se Lula desaparecesse ao entrar na
veraneio do Dops, o pior poderia lhe acontecer.
Frei
Betto entrou no quarto do casal e sacudiu os ombros do Lula:
—
Lula, levanta. Vieram te buscar. Você tem que ir.
Enquanto
isso, Geraldinho conversava no portão: ele do lado de dentro, os agentes do
Dops do lado de fora. O terno amarrotado de quem havia dormido de roupa e a
cabeleira emaranhada à moda de Bob Dylan não eram os melhores cartões de
visita para o jovem deputado de vinte e nove anos, veterano do movimento
estudantil. Geraldinho se apresentou, mostrou a carteirinha de identificação
da Assembleia Legislativa e tomou coragem para cumprir a ordem recebida:
—
Escuta, vocês têm mandado?
—
Temos, é claro – respondeu o líder do grupo, abrindo e fechando o paletó
como se mostrasse um papel no bolso, ilegível àquela distância e em tão
pouco tempo. Imediatamente, outro agente se aproximou com uma metralhadora nos
braços, como quem diz: "o mandado é este aqui".
Ao
todo, eram oito agentes, dois deles com metralhadoras. Ocupavam duas veraneios
C14, da GM, sem caracterização.
—
Lula está se vestindo e já vai sair.
—
Fala para ele vir rápido!
Os
policiais olhavam ao redor. Temiam que os vizinhos percebessem a movimentação
e criassem qualquer empecilho. Conheciam a popularidade de Lula e temiam que os
trabalhadores ousassem enfrentá-los para defender seu líder. Lula vestiu uma
calça, não gostou, vestiu outra.
Marisa
apressava o marido:
—
Você não vai?
—
Vou tomar um café. – Olhava para a mulher como se buscasse mostrar que tinha o
controle da situação. — Vou tomar um café.
Eles
tinham dormido tarde naquela noite, por volta das duas da madrugada. Às nove
da noite, Lula e Geraldinho tinham se somado ao deputado federal Airton Soares
– também do MDB e com transferência já anunciada para o PT – numa visita ao
Hospital Assunção, onde foram internados às pressas dois metalúrgicos
feridos numa explosão de bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela
repressão contra os grevistas. Um deles perdera a mão. Mais tarde, ficaram
jogando buraco até tarde. Frei Betto formou dupla com Geraldinho para desafiar
o já imbatível time de Lula e Marisa. Levaram uma surra.
O
carteado ajudava a aliviar a tensão. Horas antes, o motorista do deputado
havia saído com a orientação de ir a São Paulo buscar uns panfletos a favor
da greve para serem distribuídos na assembleia do dia seguinte. Não voltou
mais. Ninguém telefonava para dar notícias, e a incerteza só crescia.
Geraldinho aguardava algum contato, preocupado. Soube-se apenas depois que o
carro, um Opala oficial da Assembleia Legislativa de São Paulo, tinha sido
interceptado pela polícia – e que o motorista, flagrado com material subversivo,
fora sequestrado pelos policiais.
Entre
uma canastra e outra, os quatro jogavam conversa fora e buscavam motivos para
festejar o sucesso da paralisação. Mas bastava ficar em silêncio por alguns
instantes para que o ambiente voltasse a pesar.
Marisa
lembrou que o casal havia ganhado três garrafas de vinho e que elas estavam na
prateleira, à espera de sabe-se lá o quê. Eram três garrafas azuis, com um
vinho branco e suave, produzido na Alemanha e importado a preços competitivos
pela recém-fundada Expand, sob o pomposo nome de Liebfraumilch. Partira de
Otávio Piva de Albuquerque, o dono da importadora, a ideia de engarrafar
aquele riesling adocicado em garrafas azuis para que se destacassem nas
prateleiras. A estratégia deu certo e, no final da década de 1980, o
"vinho da garrafa azul" representava 60% dos vinhos importados pelo
Brasil.
—
Bora abrir esses vinhos – ela ordenou.
Beberam
as três garrafas. A jogatina continuou até Geraldinho desabar no sofá e Frei
Betto sugerir que todos se recolhessem. Quatro horas depois, estavam todos de
pé.
Marisa
colocou algumas roupas de Lula numa bolsa. Por um momento, pensou em
convencê-lo a fugir. O marido sairia pelos fundos, pularia o muro… Depois
recuperou a consciência. Não adiantaria nada. Semanas antes, um deputado a
havia procurado com a sugestão de que ela e o marido fugissem do Brasil. Ele
arrumaria os passaportes. Marisa declinou.
—
Olha, se o senhor arranjar uma viagem numa época de férias, para que as
crianças possam ir também, aí eu topo – brincou, reforçando a ligação com
os filhos.
Enquanto
o marido entrava na Veraneio, Marisa tentou ligar o Fiat 147 branco que Lula
havia comprado em meados do ano anterior, logo depois da intervenção no
sindicato. Junto com o cargo de presidente, Lula perdera também o direito a
usar o carro da entidade, o que o obrigou a financiar um carro particular.
Marisa estava decidida a seguir as duas veraneios para ver aonde estavam
levando seu marido. Foi em vão. Era cedo demais, fazia frio, e seu carro era a
álcool. Até o motor esquentar, as veraneios já haviam desaparecido.
—
Vai tranquilo que eu cuido da tua casa – Frei Betto prometeu ao amigo.
Ele
e Geraldinho arregaçaram as mangas e soltaram o alerta geral, como combinado.
Geraldinho ligou para Beá Tibiriçá, sua assessora na Alesp. A ordem, a
partir de então, era que cada pessoa comunicada avisa- ria outras cinco,
começando pelas bancadas federal e estadual do PT e do MDB. Betto, por sua
vez, ligou para Dom Cláudio Hummes, bispo de Santo André, e para o arcebispo
de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.
Ninguém
no Brasil de 1980 dedicava-se tanto quanto Dom Paulo a denunciar as violações
de direitos humanos e as arbitrariedades do regime. Isso desde o início dos
anos 1970, quando o franciscano virou arcebispo, criou a Comissão Justiça e
Paz de São Paulo para oferecer proteção aos presos políticos e denunciar a
tortura, comandou uma missa na Sé em memória de Alexandre Vannucchi Leme
(estudante da USP morto sob tortura) e vendeu o palácio episcopal por 5
milhões de dólares para comprar uma centena de casas e terrenos em bairros
periféricos e montar a Operação Periferia: uma rede voltada à ação social
capilarizada em comunidades eclesiais de base, pastorais social capilarizada em
comunidades eclesiais de base, pastorais sociais, centros de juventude e clubes
de mães.
Lula
estava a caminho do Dops, debaixo de uma baita cerração e sem muita certeza
sobre qual seria seu destino, quando ouviu a prisão noticiada no rádio. O
cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, comentava ao vivo a
prisão de Lula. Equivocada, ele dizia. Ilegal e criminosa. Além de Lula,
outros dirigentes sindicais foram detidos no mesmo dia, quase todos ao mesmo
tempo, em diversos pontos do ABC. Djalma, Rubão, Manoel Anísio, Devanir,
Wagner, Expedito e Severino em São Bernardo. José Cicote, Zé Maria e
Timóteo em Santo André. Em quase todas as casas, os telefones foram cortados.
As esposas, assustadas, tentavam se comunicar umas com as outras e não
conseguiam. Marisa tentou ter notícias da Zeneide, da Carmela, mas os
telefones das amigas estavam mudos.
Quando
Lula chegou ao Dops, deu de cara com os advogados Dalmo Dallari e José Carlos
Dias, membros da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Ficou
feliz ao vê-los.
—
Porra, vocês chegaram antes de mim! – Lula se exaltou. — Será uma honra ser
defendido por vocês.
—
Não, Lula. Nós também fomos detidos para prestar depoimento – Dallari
explicou.
As
denúncias feitas pela Comissão Justiça e Paz e o apoio dos setores
progressistas da Igreja católica aos metalúrgicos incomodavam os militares.
Polícia e governo preocupavam-se com a proximidade da visita do Papa João
Paulo II, agendada para junho. Era a primeira vez que um Papa viria ao Brasil e
a turma de Dom Paulo articulava um encontro entre o sumo pontífice e um
metalúrgico. Em sua juventude na Polônia, Karol Wojtyla havia sido operário.
No Brasil, caberia a Waldemar Rossi, metalúrgico de São Paulo e membro da
Pastoral Operária, fazer uma saudação em nome dos trabalhadores. Diante de
200 mil pessoas, Rossi leria uma breve mensagem e entregaria ao Papa uma uma
carta com denúncias sobre as más condições de trabalho e também sobre a
prática sistemática de tortura e extermínio pela ditadura.
Nos
dias que se seguiram, as prisões continuaram. Gilson Menezes e Juraci Batista
Magalhães estavam no carro do deputado federal Freitas Nobre quando o veículo
foi perseguido e interceptado. Enilson Simões de Moura, o Alemão, conseguiu
driblar a polícia por uma semana, mas foi cercado no Paço Municipal de São
Bernardo em 26 de abril. O senador Teotônio Vilela impediu que ele fosse preso
ali e o levou até o gabinete do prefeito Tito Costa, mas não teve jeito: o
dirigente saiu de lá algemado.
Osmar
Mendonça, o Osmarzinho, foi preso duas semanas depois, na sacristia da Igreja
Matriz, após discursar na assembleia de 11 de maio que poria fim à greve. A
maioria dos quatorze indiciados, no entanto, ficou presa por 31 dias, de 19 de
abril a 20 de maio de 1980, na mesma cela.
*
A
prisão de Lula e dos outros sindicalistas era favas contadas. Já no dia 14 de
abril, enquanto o Tribunal Regional do Trabalho votava a ilegalidade da greve,
uma dezena de diretores do Sindicato foi intimada ao Dops para prestar
depoimento. A polícia resolvera implicar com a Associação Beneficente dos
Metalúrgicos de São Bernardo, entidade fundada no ano anterior para
administrar o fundo de greve. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh correu para o
prédio no Largo General Osório, no centro de São Paulo.
Membro
da Comissão de Anistia e conhecido defensor de presos políticos nos anos
1970, Greenhalgh fora apresentado a Lula por Frei Betto em janeiro.
—
O Lula quer que você vá falar com ele lá em São Bernardo.
—
Mas por quê?
—
Ele diz que desta vez os metalúrgicos vão radicalizar. Acha que vai ser
preso, processado pela Lei de Segurança Nacional, por isso quer deixar tudo
arrumado.
Greenhalgh
buscou o amigo no convento na Rua Atibaia, em São Paulo, e foi com ele até o
Sindicato. Conversou com Lula sobre a Lei de Segurança Nacional, em especial
sobre o artigo 36, que previa até doze anos de reclusão para quem fosse
condenado por incitar a desobediência civil, modalidade em que se enquadravam
as greves. No dia seguinte, o advogado voltou à Rua João Basso com dois
blocos de procurações e outros tantos cartões para reconhecimento de firma.
Um a um, mais de 100 metalúrgicos constituíram Greenhalgh como seu advogado,
incluindo Lula, os membros da diretoria, os suplentes e os integrantes das
comissões de fábrica.
Agora
havia chegado a hora de agir. Greenhalgh passou a tarde no Dops, entre uma
audiência e outra. Geraldo Siqueira foi para lá assim que pôde. Ficaram no
local até o último sindicalista depor. A certa altura, um jornalista
perguntou a Geraldinho:
—
Acabaram de me ligar da redação para avisar que foi decretada a ilegalidade
da greve. O que o nobre deputado tem a dizer sobre isso?
Geraldinho
deu entrevista e avisou Greenhalgh. A decisão do TRT mudava tudo. Era preciso
avisar os sindicalistas. Junto com a ilegalidade da greve viriam a cassação
dos mandatos e os pedidos de prisão preventiva. Quando todos foram embora,
devidamente avisados, um investigador se aproximou do advogado e do deputado,
que fumavam na calçada.
—
Façam o favor de entrar novamente. O delegado quer falar com vocês.
O
delegado era Romeu Tuma, chefe do Dops desde 1977. O agente conduziu a dupla
por um corredor lateral até o elevador. Subiram até o terceiro andar e foram
levados até um quartinho minúsculo, embaixo da escada, onde havia pilhas de
Diário Oficial. O agente pediu que aguardassem e trancou a porta.
—
Será que deram outro golpe e estão prendendo em massa de novo? – Geraldinho
comentou – Estamos presos, é isso?
Cada
um sentou numa pilha de jornal. Minutos depois, Romeu Tuma entrou no cubículo,
fechou a porta e acomodou-se também numa pilha.
—
Olha, vou direto ao assunto – disse. — A comunidade de segurança se reuniu e
ficou decidido que Lula vai ser preso. Fui voto vencido. Argumentei que, se for
preso, Lula vai sair da prisão nos braços do povo, como herói, e isso é
contraproducente.
A
dupla tentava entender a razão daquela audiência.
–
Sei que vocês são amigos dele – Tuma continuou. — Estou avisando porque ele
tem criança pequena e pode ser salutar evitar o trauma de uma prisão na
frente delas.
Geraldo
Siqueira saiu intrigado. Greenhalgh também. Uma das hipóteses era a de que,
em tempos de abertura lenta e gradual, Tuma reivindicasse para si o avatar da
legalidade, numa tentativa de se mostrar democrático e expor a diferença de
atitude em relação a Sérgio Paranhos Fleury, delegado morto no ano anterior
e que fora diretor do Dops na fase mais violenta da repressão, até 1977.
Outra
hipótese era a de que Tuma, que viria muitos anos depois a ser eleito senador
por São Paulo, tivesse consciência da liderança exercida por Lula e do papel
que ele desempenharia no período que se iniciava, preferindo lidar com aquela
prisão de forma republicana. Uma terceira possibilidade, talvez a mais
provável, era que Tuma fizera aquilo para que Lula desse um jeito de fugir.
Uma fuga desmoralizaria o movimento sindical e o próprio Lula. Colocaria a pá
de cal na greve e esvaziaria a possibilidade de novas paralisações no ano
seguinte.
Geraldinho
e Greenhalgh correram para a casa de Lula e Marisa. Era preciso contar o que
tinha acontecido e decidir o que fazer.
*
Marisa
não contou para os meninos imediatamente. Leoa, preferiu preservar as
crianças e preparar o terreno para explicar com calma. Uma bobagem, porque a
notícia da prisão estava em todos os jornais. Quando contou, Marcos já tinha
visto pela TV na casa da tia Inês.
Aos
nove anos, foi Marcos quem mais sofreu com a prisão. Na escola, alguns amigos
perguntavam a ele por que seu pai tinha sido preso. E concluíam que, se estava
na cadeia, era porque tinha cometido algum crime.
—
Seu pai é bandido – diziam.
Marcos
começou a evitar a escola. Pedia para não ir. Chegava a chorar. A mãe, sem
saber o que se passava no pátio e na sala de aula, mantinha-se intransigente.
Dizia que não podia faltar, que ir para a escola era obrigação.
Um
dia, sem saber que havia um filho do Lula na sala, uma professora fez
comentários negativos sobre o movimento grevista e a prisão dos diretores.
Acusou os sindicalistas de arruaceiros e vagabundos, e disse que Lula era
ladrão, por isso tinha sido preso. Outra professora passava pelo corredor e
escutou. Deu meia volta e chamou a atenção da colega. Em seguida, pediu à
diretora que chamasse os dois, Marcos e a tal professora, para uma conversa. Na
reunião, contou que Marcos era filho do Lula e fez um discurso. Explicou que
não havia nenhuma acusação de roubo contra os sindicalistas, que eles tinham
sido presos por defender os direitos dos trabalhadores e que não fazia sentido
dizer aquilo para os alunos.
Quando
Marisa tomou pé da situação, tirou o menino da escola. Não havia clima para
enfrentar o desrespeito e as versões distorcidas de colegas e professores. E a
mãe, àquela altura, não tinha condições de se preocupar com isso. A cada
dia, um compromisso diferente: assembleia, reunião, entrevista, missa,
caminhada, visita ao Dops. Marcos ficou maio e junho sem ir às aulas. Voltou
no segundo semestre, mas acabou repetindo a terceira série.
Marisa
visitou o Dops pela primeira vez seis dias depois da prisão. Foi com outras
esposas de sindicalistas, mas sem os filhos. Não sabia se as crianças seriam
autorizadas a entrar. Na visita seguinte, levou os meninos, não sem antes
explicar aonde iam e o que iriam fazer.
—
Seu pai está preso, tem policiais junto com ele, mas ele está bem, vocês
não precisam ter medo.
Quando
chegaram, Tuma achou prudente conduzi-los até a sala de reunião anexa a seu
gabinete, no quarto andar.
— Dona Marisa, é melhor a senhora entrar na
minha sala e esperar aqui – orientou. — Vou buscar o Lula.
Fábio
olhou em volta, desconfiado. Viu a mesa de trabalho, o sofá de couro cor de
vinho, uma mesa de centro, quadros na parede. Quando Lula apareceu, não teve
dúvidas:
—
Papai, você não está na cadeia, você está num hotel!
O
Hotel do Tuma parecia um lugar divertido para as crianças. Marcos, mais
introspectivo, olhava ao redor, curioso. Fábio corria pela sala, pulava no
sofá, brincava de esconder. Em seguida, virou um super-herói de gibi, com sua
capa e seus super-poderes emitindo pows, zas e bangs. De repente, sem que
ninguém pudesse contê-lo, desferiu um soco nos países baixos do delegado. Os
pais, constrangidos, pediram desculpas a Tuma e deram uma bronca no garoto ali
mesmo. Na hora de ir embora, Sandro expressou a tensão que vivia: fez birra,
chorou, vomitou. Não queria deixar o pai ali. Nos dias que se seguiram, Marisa
preferiu deixar as crianças em casa.
Desde
o primeiro dia, ficou evidente o tratamento respeitoso dispensado a Lula e sua
família. Tuma permitia que o preso mais famoso do Brasil passasse quase o dia
todo em sua sala. Podia ler os jornais, conversava com Tuma, contava a ele
episódios prosaicos da vida sindical e chegava a abrir, sem muita
preocupação, detalhes dos bastidores da greve, como as datas das próximas
reuniões e traços de personalidade de outros dirigentes. Nenhum segredo,
nenhuma informação inédita ou confidencial, mas o bastante para Tuma
estabelecer com Lula uma espécie de relação de troca. Era o suficiente para
despertar a desconfiança dos colegas de cela, em especial da turma de Santo
André, que não viam com bons olhos a aparente intimidade entre ele e o chefe
do Dops.
No
quarto andar, Lula também recebia visitas importantes, como as do senador
alagoano Teotônio Vilela e de Almir Pazzianotto, advogado do Sindicato, para
longas conversas. Numa madrugada, já depois de meia-noite, entraram dois
emissários do General Golbery, ministro da Casa Civil, com a missão de
negociar o fim da greve. Greenhalgh foi convocado por telefone por volta da uma
hora da manhã para ir até o Dops intermediar a conversa. Quando chegou, os
dois forasteiros já haviam partido.
Tuma
também permitiu que Lula saísse escondido para visitar a mãe na casa de sua
irmã Maria. Dona Lindu estava com câncer no útero, em estágio avançado,
com chances remotas de recuperação, e nem desconfiava que o filho tinha sido
preso. Lula saiu numa Veraneio do Dops depois das onze horas da noite, deitado
no banco traseiro para que ninguém o visse. Os dois agentes que o escoltavam,
um policial e um escrivão, vestiram-se como operários para não levantar
suspeitas. Uma semana depois, no dia 12 de maio, Tuma permitiria nova saída a
Lula, dessa vez para que pudesse acompanhar o enterro de Dona Lindu. Na
ocasião, o carro em que ele chegou ao cemitério da Vila Pauliceia ao lado de
Marisa e de dois policiais à paisana, foi cercado por manifestantes, que
exigiam sua libertação. Jogavam pedras, tentavam levantar o automóvel no
muque, mas Lula, tranquilo e sem algemas, os demoveu da imprudência de tentar
alguma besteira.
Na
maior parte do tempo, ficaram treze metalúrgicos na chamada "cela
zero", a primeira no corredor da carceragem. Dormiam em
"treliches" de alvenaria e dividiam um único vaso sanitário e um
único chuveiro de água fria. A igreja mandava comida, livrando os detentos da
árdua tarefa de encarar o picadão servido na carceragem. Diferentemente dos
presos políticos levados para o Dops dos anos 1970, Lula e seus companheiros
na Lula e seus companheiros não foram torturados. Mas, no dia 7 de maio, iriam
repetir uma estratégia testada pelos presos nos anos de chumbo: anunciariam
uma greve de fome. Neste momento, os metalúrgicos de São Caetano já tinham
voltado ao trabalho no dia 3 sem ter nenhuma reivindicação atendida. Os
trabalhadores de Santo André fariam o mesmo no dia 6. Sobraram os operários
de São Bernardo. Somente um fato político de grande envergadura seria capaz
de colocar mais lenha na fogueira e chacoalhar o ânimo dos trabalhadores.
—
Porra, Betto, greve de fome? – reclamaria Lula.
—
Sim, greve de fome – insistiu Frei Betto, pai da ideia.
—
Eu e o Greenhalgh vamos escrever um manifesto em nome dos presos justificando a
opção pela privação alimentar. Ele será disparado para a imprensa logo
cedo.
—
Não dá, porra. Peão gosta de comer. Não tem vocação pra Gandhi.
—
Greve de fome, Lula. Água e sal. Você vai ver como o jogo vira.
*
Fora
das grades, a greve continuava, agora na ilegalidade. Um show em solidariedade
aos metalúrgicos estava marcado para o domingo 20 de abril, às três da
tarde, no estádio da Vila Euclides. Chico Buarque, Gonzaguinha, MPB-4, João
Nogueira e outros grandes nomes da MPB haviam confirmado presença e se
prontificado a doar integralmente o valor dos ingressos para o fundo de greve.
O objetivo era repetir a experiência do ano anterior, quando artistas como
Elis Regina e João Bosco, entre outros, fizeram a mesma coisa: encheram o
estádio da Vila Euclides e doaram seus cachês para o fundo de greve. Na
véspera do show de 1980, no entanto, chegaram ordens para que a
apresentaçãoosse cancelada. Cerca de 100 mil ingressos tinham sido vendidos.
Chico Buarque havia feito uma música especialmente para a ocasião, em
homenagem aos metalúrgicos, mas não pôde apresentá-la. Encontrou outra
maneira de ajudar: incluiu a canção "Linha de montagem" num
compacto e colocou à venda o mais depressa que pôde. O fundo de greve ficaria
com a renda referente aos direitos autorais de autor e intérprete:
As
cabeças levantadas
Máquinas
paradas
Dia
de pescar
Pois
quem toca o trem pra frente
Também
de repente
Pode
o trem parar
No
dia 21, uma segunda-feira, 5 mil pessoas aglomeraram-se na Sé, em São Paulo,
para participar de um ato litúrgico celebrado por Dom Paulo Evaristo Arns,
também em solidariedade aos metalúrgicos em greve e aos sindicalistas presos.
Marisa subiu ao altar representando o marido.
Em
casa, Marisa era a cada dia mais assediada. De um lado, jornalistas queriam
ouvi-la o tempo todo. De outro, políticos e militantes cobravam engajamento.
Apenas as mulheres dos detidos tinham autorização para visitá-los, de modo
que Marisa desempenhou papel fundamental na comunicação entre os de dentro e
os de fora. A cada visita, voltava com bilhetes e recados rabiscados pelo Lula,
sempre no sentido de tranquilizar os trabalhadores e estimular a greve. Frei
Betto e Geraldo Siqueira permaneciam em vigília e ajudavam a orientar Marisa.
Matérias de jornais diziam que Frei Betto era "o intelectual por trás de
Lula" ou que ele "fazia a cabeça" do presidente do Sindicato,
coisa que o religioso sempre negou. Além de preconceituosa, por inferir que um
operário não seria capaz de pensar por conta própria, a frase era irreal. O
frade não exercia essa ascendência sobre o sindicalista. Talvez o
influenciasse nos temas do Evangelho ou na condução do fogão. Filho de uma
renomada cozinheira de Belo Horizonte, Frei Betto sempre gostou de cozinhar e,
já em 1980, ensinou aensinou as primeiras receitas a Lula, que até então
não ousava tocar nas panelas. Mas, nos temas relacionados ao sindicalismo e à
política, Betto era somente um interlocutor.
Sobre
a formação política de Marisa e outras esposas de metalúrgicos, no entanto,
o dominicano exerceu influência significativa, principalmente naquele
período. A aproximação começara dois meses antes da prisão. Assessor da
pastoral operária de São Bernardo desde o ano anterior, Frei Betto foi
incumbido por Dom Cláudio Hummes, bispo do ABC, a estar sempre disponível
para os metalúrgicos. A greve seria intensa, o governo tendia a radicalizar, e
a atividade pastoral exigiria muita solidariedade para os grevistas.
Frei
Betto conhecera Lula em janeiro de 1980, na cidade mineira de João Monlevade,
por ocasião da posse de João Paulo Pires de Vasconcelos na presidência do
sindicato dos metalúrgicos da Belgo-Mineira. Lula quis saber por que Frei Betto
nunca tinha ido visitá-lo no Sindicato de São Bernardo. Encontraram-se
semanas depois e Lula o convidou para ir almoçar em sua casa. Marisa levou um
susto quando atendeu à porta e deu de cara com um sujeito jovem, de trinta e
poucos anos, vestindo calça jeans. Ela esperava um frade com pelo menos o
dobro da idade, bata e sandálias de couro. Riu para si mesma.
—
Trouxe uma massa para o almoço – o frade se adiantou.
—
Você pensa que nesta casa não tem comida? – Marisa respondeu, num misto de
brincadeira e leve indignação.
—
Imagina – o visitante tentou consertar. — É um hábito. Sempre levo alguma
coisa nas visitas que faço em nome da pastoral.
Papo
vai, papo vem, o dominicano de calça jeans passou a frequentar a casa. Logo
sugeriu organizar um grupo de estudos voltado para as mulheres. A ideia, num
primeiro momento, era apresentar um panorama da conjuntura econômica e
discutir os fundamentos da greve. Funcionava como um curso livre de
introdução à política brasileira, adaptado à realidade daquelas mulheres e
ao ambiente operário com o qual as famílias estavam habituadas. Com Paulo
Freire servindo de farol, Frei Betto explicava a guerra fria, a ditadura
militar, o milagre econômico, a dívida externa ou a inflação e apresentava
temas como reforma agrária, oligopólio, direitos humanos e direitos das
mulheres. O movimento sindical surgia como um tema transversal, permeando quase
todas as aulas e palestras.
As
reuniões eram realizadas uma vez por semana, à noite, no salão paroquial da
Igreja Matriz. Janjão levava a mulher, Emília, e dava carona para Zeneide,
mulher do Devanir. Eram vizinhas na região da Vila Alpina, na Zona Leste de
São Paulo. Eliete, mulher do Expedito, também ia. Outra Eliete, mulher do
Gilson, completava o grupo junto com Marisa. Idalina, mulher do Djalma, foi
poucas vezes. Um dia, Frei Betto levou um advogado para o curso. Era o
Greenhalgh, que falou sobre a Lei de Segurança Nacional, explicou a
ilegalidade da greve e contou o que poderia acontecer com os maridos. Umas
voltaram pra casa ainda mais preocupadas. Outras não levaram a sério.
"Ser preso por fazer uma greve?", pensavam. "Imagina, esse tempo
já passou".
Agora,
com todos os diretores presos, Frei Betto seguia orientando o grupo de
mulheres, o que continuou fazendo por todo o semestre. Trazia notícias,
buscava tranquilizá-las e, principalmente, desempenhava o papel de fustigar a
militância, sobretudo de Marisa. Também ajudava a mobilizar a igreja
progressista. Seu primeiro gesto após a prisão, no sábado, foi articular a
missa celebrada por Dom Paulo na segunda-feira, dia 21, na Sé. Em seguida,
haveria a grande manifestação de 1º de Maio, Dia do Trabalho, na na Vila
Euclides, e Marisa tinha de comparecer.
Greenhalgh,
responsável pela defesa dos sindicalistas de São Bernardo, acabou se
aproximando de Marisa tanto quanto Frei Betto naqueles dias. Assim que assumiu
o caso, passou a frequentar assembleias e a acompanhar os dirigentes em
panfletagens nas portas das fábricas durante a troca do primeiro turno, por
volta das seis da manhã. Após a atividade, ia com Lula para casa e só então
tomava o café, preparado por Marisa. Depois da prisão, Greenhalgh criou o
hábito de visitar Marisa e, todas as vezes, levar uma lata de leite em pó. A
lata chamou atenção das crianças. Sandro apontava para a vaquinha desenhada
na embalagem. Fábio queria saber o que estava escrito.
—
Mococa – Greenhalgh explicou. — É o nome do leite e também o nome da cidade
em que esse leite é produzido.
Antes
não tivesse contado.
—
Chegou o Mococa! – Sandro passou a gritar, toda vez que o advogado batia palmas
junto ao portão.
As
visitas ao Dops também se tornaram frequentes. Numa das visitas, Lula se
queixou da falta do que fazer.
—
Eu ainda tô numa situação privilegiada – disse. — Tuma me deixa subir, ler
os jornais… Mas e os outros? Eles não aguentam mais jogar baralho!
Greenhalgh
voltou com uma bola de futebol e treze pares de kichute, um tênis preto com
cravos grandes de borracha, bastante popular naqueles anos. Agora os grevistas
podiam bater uma bola no pátio quando fosse hora de banho de sol
*
No
dia 1º de maio, São Bernardo do Campo amanheceu cercada. Havia barreiras nas
principais vias de acesso, incluindo a Rodovia Anchieta e a Rodovia dos
Imigrantes. Em algumas ruas, ficou estabelecido que apenas moradores entrariam,
desde que exibissem comprovante de residência. Na véspera, o governo do
Estado havia proibido qualquer comemoração do Dia do Trabalho no ABC. Desde
seis da manhã, a tropa de choque ocupava o Paço Municipal, a Praça da Matriz
e o entorno do estádio da Vila Euclides com um contingente estimado em 5 mil
policiais. Mesmo assim, a orientação vinda da cela zero prevaleceu e a
multidão se dirigiu a São Bernardo. Primeiro, se reuniu na Matriz, onde a
polícia autorizou a realização de uma missa em homenagem aos trabalhadores,
celebrada pelo bispo Dom Cláudio Hummes. De lá, mais de 100 mil pessoas se
prontificaram a seguir em passeata até o campo de futebol. Por volta das onze
horas, o governador Paulo Maluf não teve alternativa a não ser recuar e
ordenar que a polícia liberasse a entrada no estádio. A multidão estendia
faixas e bandeiras. Numa delas lia-se: "Se não soltarem o Lula, ninguém
volta ao trabalho". Marisa representava o marido.
A
terceira e última parada dos metalúrgicos, muitos deles acompanhados das
esposas e dos filhos, foi o Paço Municipal, também ocupado pela massa. No
total, as celebrações se estenderam das nove às duas da tarde. Por algumas
horas, os operários sentiram-se vitoriosos e gritaram a plenos pulmões. Mas
as negociações não avançavam nem um milímetro.
No
dia seguinte, Lula teve um habeas corpus negado, o que significava que ele
continuaria preso. No dia 3, os metalúrgicos de São Caetano encerraram a
greve. Os de Santo André fizeram o mesmo no dia 6. A greve completara um mês
e nenhuma reivindicação parecia caminhar. As ameaças de demissão e o corte
nos pagamentos tinham mais força do que a capacidade de lutar. Como manter o
emprego? Como alimentar os filhos?
No
dia 7, quando apenas os trabalhadores do Sindicato de São Bernardo continuavam
em greve, os sindicalistas presos deram início à greve de fome, proposta por
Frei Betto, e as esposas resolveram organizar mais um ato de rua, a ser
deflagrado no dia seguinte. Em 8 de maio, as mulheres caminhariam pelo centro
de São Bernardo. A greve de fome iniciada na véspera fazia aumentar a
preocupação. Algumas choravam. Queriam seus maridos de volta, não queriam
mártires.
Marisa
puxou a marcha das mulheres. As regras da caminhada foram definidas em
reunião. Apenas as mulheres marchariam no meio da rua, e era obrigação de
todas convidar as vizinhas, as primas, as colegas de trabalho. As crianças
poderiam ir com as mães. Os maridos que quisessem acompanhar teriam de andar
nas calçadas. Cada mulher levaria uma rosa e uma bandeirinha do Brasil. Qualquer
problema que acontecesse, sobretudo em caso de repressão, sentariam no chão e
cantariam o Hino da Independência. Para os líderes do movimento sindical, o
Hino Nacional era muito identificado com os militares e com a repressão. Já o
Hino da Independência falava em liberdade, o que tinha tudo a ver com os
sindicalistas presos.
Em
vinte dias, a esposa do Lula havia completado uma metamorfose. De mulher de
metalúrgico, transformara-se em liderança. Combinaram de se encontrar na
Igreja Matriz, onde aconteceria uma assembleia de trabalhadores. A marcha
sairia no início da tarde. Quando tudo parecia pronto, chegou a notícia de
que a passeata fora proibida. A deputada estadual pelo MDB Irma Passoni, que
aguardava a formalização do PT para ingressar no partido, foi negociar com as
autoridades. Quase uma hora de discussão e a marcha foi, enfim, autorizada.
Marisa, ansiosa, passou mal e chegou a desmaiar na sacristia. As outras
mulheres esperaram ela melhorar para saírem todas juntas.
Por
volta das três da tarde, mais de mil mulheres tomaram a Praça da Matriz,
desceram a Rua Marechal Deodoro, passaram pela Praça Lauro Gomes e seguiram
até a Rua Américo Brasiliense. Havia polícia feminina por todo canto. Bombas
de gás, cavalaria. Nas fotos, Marisa aparece na primeira fila, de mãos dadas
com as companheiras, junto a uma faixa na qual se lia: "Caminhada das
mulheres pela reabertura das negociações". "Libertem nossos
presos", dizia outra faixa. Os filhos de Marisa seguiram o cortejo um pouco
mais atrás, junto com as tias. Em determinado momento, entoaram em coro uma
paródia da música "Peixe vivo": Como pode / um operário / viver
com esse salário…
Por
volta das cinco, estavam novamente na Matriz. Havia chegado o momento de dizer
algumas palavras ao microfone. O vigário, Padre Adelino de Carli, solidário
desde o primeiro momento à causa dos trabalhadores, passou a palavra para
Nelson Campanholo, único membro da diretoria eleita que não tinha sido preso,
que logo assumiu o papel de mestre de cerimônia e convidou cinco mulheres a
falar em nome de todas as outras. A primeira foi Zeneide, mulher do Devanir. Em
sua fala e também nas demais, as mulheres se manifestaram contra a prisão e
contra a intervenção no Sindicato. Uma delas sugeriu que todas procurassem
emprego, a fim de contribuir com o orçamento doméstico naqueles dias de
incertezas. Quem também falou ao microfone foi Ana Maria do Carmo, viúva do
metalúrgico Santo Dias da Silva, morto pela polícia durante uma greve no ano
anterior, em São Paulo. Marisa foi a última a falar. Momentos antes, um
jornalista a interpelou com um comentário a queima-roupa:
—
Seu marido foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
Marisa
estremeceu. Pensou que tinha sido uma resposta das autoridades à marcha de
mulheres. Querendo ajudar, acabara atrapalhando a luta do marido. Quando pegou
o microfone, as pernas tremiam.
—
Estou aqui como mulher de metalúrgico e quero pedir o apoio de todas vocês
para ajudar os maridos nessa greve – foi tudo o que ela conseguiu dizer.
O
ato foi encerrado pontualmente às seis da tarde com os presentes agitando a
bandeira do Brasil e cantando:
Brava
gente brasileira
Longe
vá, temor servil
Ou
ficar a Pátria livre
Ou
morrer pelo Brasil…
Os
presos já estavam subindo pelas paredes no terceiro dia de greve de fome. Era
sábado, 10 de maio. No domingo haveria Dia das Mães e eles ali, presos, de
boca fechada, sem poder desfrutar da macarronada em família. Nada de frango
com polenta, nem churrasco, nem rabada ou dobradinha. Xingavam-se uns aos
outros e procuravam um culpado. Quem teria sido o imbecil que teve a brilhante
ideia de fazer greve de fome? Àquela altura, já tinha metalúrgico escondendo
balinhas no travesseiro, camuflando alguma bolacha trazida às escondidas no
último dia de visita.
Romeu
Tuma também se irritou. Uma greve de fome àquela altura poderia colocar em
risco sua reputação. A Justiça Militar tentaria interferir, entidades de
direitos humanos fariam protestos…
—
Ô, Mococa – bastou Greenhalgh contar o episódio da lata de leite para que
Lula prontamente adotasse o apelido inventado pelo filho -, greve de fome é
coisa pra estudante, pra comunista revolucionário. Peão de fábrica quer
comer, não quer fazer revolução. Dá um jeito de acabar com essa merda!
O
recado foi transmitido a Frei Betto. Juntos, frade e advogado quebraram a
cabeça em busca de uma saída honrosa. Até que chegaram a uma solução
—
Precisa caracterizar como um apelo externo.
—
Como assim?
—
O bispo. A gente combina com o bispo para ele pedir publicamente o fim da greve
de fome. Aí fica como se os metalúrgicos, embora dispostos a continuar,
tivessem acatado o apelo de uma autoridade religiosa, um representante de Deus.
Consultaram
Dom Cláudio Hummes e explicaram a ideia. O bispo do ABC aceitou. Redigiu uma
carta clamando para que cessassem a greve de fome e a entregou aos amigos. No
dia seguinte, o advogado levou a carta e a leu para os presos. A greve de fome
terminou imediatamente. Tuma mandou buscar porções generosas de lula à dorê
no Acrópoles, um restaurante no Bom Retiro, e serviu para o grupo na
carceragem afirmando que o menu especial era uma homenagem ao dirigente. Tudo o
que o chefe do Dops menos queria em seu currículo era a morte de um
sindicalista por privação alimentar logo ali, em seu "hotel"
*
Lula
voltou para casa no dia 20 de maio, uma terça-feira, nove dias após o
término da greve e 31 dias após sua prisão. Com a situação normalizada nas
fábricas, a Justiça deferiu liminar concedendo aos presos o direito de
responder em liberdade. Pesou a favor dos réus a volta dos operários ao
trabalho. Sem greve para comandar, e afastados legalmente da atividade
sindical, a liberdade dos sindicalistas já não representava risco.
O
medo de voltar para o xadrez ainda assustaria os metalúrgicos por mais um ano
e meio. Nesse período, dezesseis sindicalistas responderam processo por
insuflar a população, numa época em que toda manifestação civil era
considerada um atentado contra a segurança nacional. O Sindicato permaneceria
sob a tutela de um interventor e a diretoria cassada jamais voltaria a
comandá-lo, uma vez que a absolvição dos líderes só ocorreria em 1981,
depois da posse da nova diretoria eleita.
No
dia 20 de maio, rumores de que o alvará de soltura seria emitido naquela
terça-feira começaram a circular por volta da hora do almoço. Greenhalgh
convocou uma reunião de emergência com as esposas dos réus, em seu
escritório, às cinco da tarde. Foram todas. O advogado não chegava nunca.
Ele passou a tarde na 2a Auditoria Militar, na Avenida Brigadeiro Luiz
Antônio, em São Paulo, e só conseguiu que lhe entregassem o documento depois
das seis. Ligou de lá mesmo e deu o recado por telefone. Foram todas para o
Dops. Tuma recebeu Marisa, chamou Lula para que os dois pudessem conversar,
depois chamou as demais mulheres. Finalmente, pediu a elas que fossem até a
calçada, onde já se formara uma pequena aglomeração, e comunicasse que Lula
sairia um pouco mais tarde, mas que era proibido ter ato público na porta do
Dops. Ou seja: era preciso dispersar a galera.
Enquanto
isso, Greenhalgh correu da 2ª Auditoria Militar para o Largo General Osório.
Ele não aceitaria nada que não fosse a imediata liberdade de seus clientes.
—
Só amanhã – um sentinela informou.
—
Como assim, amanhã?
—
Acabou o expediente no Dops. Os presos só podem sair até as seis.
—
Não, senhor. Os presos podem e devem ser soltos imediatamente após a
expedição do alvará de soltura. Prendê-los por um minuto a mais é uma
ilegalidade.
—
Sinto muito, doutor.
—
Sinto muito, uma ova! Os juízes atrasaram de propósito para obrigar os
sindicalistas a passar mais uma noite na cela. Isso é uma truculência.
Os
repórteres que, naquele momento, faziam plantão em frente ao Dops registraram
o momento em que o advogado, impassível diante da impertinência do agente,
foi até o portão de ferro e o ergueu com as próprias mão.
—
Vim para soltar os presos e vou tirá-los daqui na marra.
Romeu
Tuma escutou a algazarra e veio correndo ao pátio tomar satisfação.
Explicação dada, assentiu em liberá-los àquela hora e ordenou que os carros
fossem providenciados. Cada preso foi entregue em sua casa numa Veraneio C14.
Conforme
a notícia era divulgada nas rádios, dezenas de pessoas dirigiam-se para a
casa de Lula e Marisa. Às nove da noite, o motorista do Dops estacionou a 200
metros do número 273 da Rua Maria Azevedo Florence.
—
Daqui em diante vocês vão a pé – disse. — Questão de segurança. Não posso
prever o que essa multidão exaltada pode fazer.
Lula
desceu do carro, acendeu um cigarro e pôs-se a caminhar com uma bolsa de
roupas numa das mãos e o cigarro na outra. Greenhalgh caminhava a seu lado.
Seguiram assim por dois quarteirões. No final do percurso, Lula segredou ao
advogado:
—
Mococa, o negócio é o seguinte. É uma honra ser recebido desse jeito na
minha casa, mas você precisa dar um jeito de acabar com essa festa logo. Quero
dar um trato na Marisa, tomar um banho e descansar.
Muita
gente tinha ido abraçar o líder. Gente do Sindicato, vizinhos, amigos, as
atrizes Lélia Abramo e Bete Mendes. Mino Carta conversava com Marisa à mesa.
"Viva a volta do Lula", dizia um cartaz. Abraços, vivas, copos de
cerveja, rojões. Alunos do curso noturno do ginásio João Firmino, do outro
lado da rua, notaram a presença ilustre e pularam o muro da escola para se somar
à festa, deixando os bedéis desesperados. "Lula é o maior",
berravam….
Por
volta da meia-noite, Lula foi cobrar o que havia combinado com Greenhalgh.
Marisa ajudou a botar todo mundo pra fora.
—
Vambora que amanhã é dia de acordar cedo. Na casa, havia alguns passarinhos
em gaiolas. Canário, pássaro preto… Antes de deitar, Lula abriu as gaiolas e
soltou os passarinhos.
*Este
artigo foi publicado originalmente na Coluna de Camilo Vannuchi, no UOL.
Edição:
Marina Selerges
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