Os 'documentos secretos' levados por Joe
Biden ao Brasil que desafiam versão de Bolsonaro sobre ditadura
Mariana Sanches - @mariana_sanches
Da BBC News Brasil em Washington
9 outubro 2020, 06:35 -03
Atualizado 9 outubro 2020, 08:22 -03
Dilma e Biden em foto de 2015; na época,
governo americano se aproximou de países latino-americanos com abertura de
documentos históricos sobre violações de direitos humanos
Se havia alguma dúvida de que o
presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o presidenciável democrata Joe Biden
estão em lados políticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na
última semana tratou de dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o
pleito de 3 de novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da
Amazônia e aventou até sanções econômicas ao país.
O meio ambiente, no entanto, está longe
de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro. O
ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais
o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a
apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações
cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
Em 17 de junho de 2014, Biden, o então
vice-presidente na gestão Barack Obama, desembarcou em Brasília com um objeto
especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos por autoridades
americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de informações passadas não
só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de
repressão, os relatórios americanos detalhavam informações sobre censura,
tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.
Até aquele momento, a maior parte dos
documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou
e colaborou com a ditadura durante boa parte do período em que os militares
estiveram no poder.
Biden sabia bem do que se tratava. E
sabia também que produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da
então presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas
torturadas nos porões da ditadura.
É certo que o governo americano poderia
ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.
Mas a gestão Obama-Biden queria gravar
seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela
transparência e pelos direitos humanos.
Mais do que isso, queria melhorar
relações diplomáticas com base na troca de informações altamente relevantes
para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.
No caso do Brasil, isso era ainda mais
estratégico já que a revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de
Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) havia espionado conversas da
mandatária brasileira abalou o alicerce das relações entre os dois países.
"Estou feliz de anunciar que os
Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar
com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa
ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da
presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.
Sem ditadura
A própria definição dada por Biden do
regime militar é hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no
país.
"Espero que olhando documentos do
nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu
Biden.
Cinco anos após esse encontro entre
Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por
completo as revelações feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por
Biden são peça fundamental.
"A questão de 64 não existem
documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?", disse
Bolsonaro.
O presidente respondia à imprensa, que
questionava uma declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra
Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.
De acordo com a Comissão Nacional da Verdade,
Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela
última vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes
do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas mãos dos
agentes.
"Comissão da Verdade? Você acredita
em Comissão da Verdade?Você quer documento para isso, meu Deus do céu?
Documento é quando você casa, quando você se divorcia. Eles têm documento
dizendo o contrário?, acrescentou Bolsonaro.
Mas, afinal, o que há nos documentos
trazidos por Biden?
Documento enviado pelo consulado
americano do Rio de Janeiro descreve padrão de tortura
"O suspeito é deixado nu, sentado e
sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na
cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis.
Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime
acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não
coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram
que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento
físico e mental até confessar."
"Ele é colocado nu, em uma pequena
sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques
elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e
eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por
muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se
a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse
período, ele não recebe comida nem água."
O texto acima é um trecho de um
documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao
Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua visita.
A comunicação diplomática informa que
126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao relatad o, além de outras
formas de sevícias, como o "pau de arara". O informe é feito não só
com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cuja
identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.
Detalhes
"Esse é um dos relatórios mais
detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos
Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto
de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em
Washington D.C.
Ainda de acordo com Kornbluh, "os
documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas
(de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos
direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo
acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que
foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes".
Mas nem sempre Bolsonaro nega que a
ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em
uma entrevista à rádio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi
torturar e não matar".
E dois anos mais tarde, em meados de
2018, quando já estava em pré-campanha presidencial, confrontado com a
informação de um relatório da CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de
desclassificação de Biden, que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a
execução sumária de adversários do regime, o atual presidente disse à rádio
Super Notícia: "Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um
tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece."
Tortura e morte
Um dos outros documentos trazidos por
Biden evidencia que a máquina repressiva da ditadura brasileira não só torturou
como matou. Nele, o cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin,
afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador profissional
trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco", em São
Paulo.
Telegrama de 1973 descreve a tortura de
um policial e de uma amiga dele que, inicialmente, se recusou a colaborar
Em um telegrama de maio de 1973, Chapin
escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma
célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi
forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou
sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela não foi
cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem
alimentos ou água."
"Isso a quebrou, nossa fonte
contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios
em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um
subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros
nele da cabeça aos pés com uma arma automática."
O termo "costurar" seria
referência a um método para desfigurar o cadáver e evitar sua futura
identificação.
Assassinatos cometidos pela repressão
O cônsul Chapin relata ainda que
"vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo
são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos
na região de São Paulo no ano passado (1972)".
Ao registrar as mortes em São Paulo,
Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante
Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos de repressão do
país, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser
condenado civilmente pela Justiça pelos crimes de tortura. Ele é também
considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou ter como
livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.
"Sou capitão do Exército, conhecia
e era amigo do coronel, sou amigo da viúva. (...) o coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do Exército, a Medalha do
Pacificador, é um herói brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.
Enquanto era deputado, no dia da votação
da abertura de processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff,
naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em
1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante
Ustra, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima
de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim".
"Só terroristas"
Outro documento da leva de Biden desafia
um argumento central de Bolsonaro sobre o período: o de que o regime militar só
prendeu, torturou e matou "terroristas".
Em dezembro de 2008, quando o Ato
Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou liberdades
individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro ocupou o
plenário da Câmara para dizer: "Eu louvo os militares que, em 1968,
impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, (...) Mas eu louvo o AI-5
porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em
armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em
nosso País".
Serviço diplomático americano no Brasil
mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um
cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e
preso no DEOPS
Mas em outubro de 1970, o serviço
diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de
Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia
sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia
política paulista.
Horth não era um comunista subversivo e
afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas
celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política".
Outro documento, de dezembro de 1969, dá
força ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão
ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em
Ribeirão Preto.
"Mais do que trazer novos fatos, os
documentos americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir
de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia
dos Estados Unidos, que não tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de
esquerda e que apoiavam os militares", afirmou à BBC News Brasil Pedro
Dallari, relator da CNV.
Prova de que o governo americano era,
naquele período, abertamente a favor do regime está em uma comunicação do
embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao
Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer críticas públicas contra
o que qualifica como "excessos" cometidos contra os direitos humanos
poderia "prejudicar nossas relações gerais".
CNV
Os documentos americanos tornaram-se
especialmente importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas
Brasileiras de oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas
de tortura em dependências militares.
"Ao mesmo tempo em que chegavam os
documentos americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas
sindicâncias não localizaram nada", afirma Dallari.
Kornbluh concorda que, enquanto muito da
documentação brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos
americanos são fonte importante para acessar a história brasileira.
"Parte dos militares brasileiros
esconderam com sucesso a maioria de seus próprios documentos e mantiveram isso
fora do escrutínio público. E conseguiram escapar de qualquer tipo de
responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos humanos. E então os
documentos americanos fornecem um histórico fidedigno de pelo menos alguns
casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas são evidências de crimes que
ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da
Anistia, de 1979, que impediu a responsabilização criminal de agentes e
oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.
Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o
Exército brasileiro afirmou que não opinaria sobre o reconhecimento do Estado
Brasileiro em relação às torturas, enquanto a Força Aérea e a Marinha disseram
não ter provas para reconhecer, tampouco refutar as acusações de violações de
direitos humanos nas décadas de 60 e 70.
Embaixador escreveu sobre não condenar
excessos publicamente
O que o histórico diz sobre relação
Brasil-EUA em possível governo Biden?
Para Dallari, apesar de o golpe de 1964
ter recebido o apoio do governo americano, então sob a batuta do democrata
Lyndon Johnson, nas últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse
em colaborar com processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos
governos na região e o papel dos Estados Unidos nelas.
"Eu não tenho porque duvidar que
Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informações. E o primeiro
presidente americano a se opor a violações dos direitos humanos na região foi
outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao
presidente americano entre 1977 e 1981.
Na verdade, desde a administração
Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas
têm se tornado públicos. Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos
ganhou tons de política de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de
"diplomacia da abertura".
Além do Brasil, Argentina e Chile também
receberam acesso a documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem
e seu relacionamento na região.
E com Biden e Dilma, o especialista
afirma que esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já
que as relações foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014.
"Tenho certeza de que ele foi
informado sobre o teor dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar
esses documentos que descrevem violações graves dos direitos humanos durante a
era militar. Certamente foi uma experiência de aprendizado para o
vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores
cometidos", diz Kornbluh.
Em conversas com a BBC News Brasil,
conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é
central para o candidato, especialmente na América Latina.
Mas embora ainda exista um grande arquivo
intocado sobre a história da ditadura do Brasil, especialmente de informações
dos órgãos de inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer
nova abertura se vencer as eleições.
Isso porque documentos secretos
americanos sobre outros países só podem se tornar públicos se os governos
dessas nações requisitarem acesso aos americanos. E hoje não há interesse no
governo brasileiro por esse tipo de informação.
"Naquele momento, a abertura foi
importante e ajudou os dois países a se reaproximarem. Agora, em um possível
governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, é um contexto completamente diferente.
Mas se Bolsonaro cometer violações de direitos humanos, a administração Biden
agiria de modo muito mais rápido e negativo do que Trump e pressionaria
Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.
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