Como a China pode ter 'descoberto' as
Américas sete décadas antes de Colombo
Vinícius Mendes - De São Paulo para a
BBC News Brasil
BBC News Brasil2 de outubro de 2020
"Quando Cristóvão Colombo se lançou
à travessia dos grandes espaços vazios a oeste da Ecúmena (área habitável da
Terra), havia aceitado o desafio das lendas. (....) O mundo era o Mar
Mediterrâneo com suas costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes
portugueses asseguravam que os ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às
vezes arrastavam troncos curiosamente talhados, mas ninguém suspeitava que o
mundo seria, logo, assombrosamente acrescido por uma vasta terra nova". É
assim que o uruguaio Eduardo Galeano começa seu clássico As Veias Abertas da América
Latina, livro publicado em 1971 que narra a história da região e seu lugar no
mundo.
O escritor, assim como toda a
historiografia ocidental, parte da primeira viagem do navegador genovês — entre
o porto de Palos, na região da Andaluzia, na Espanha, e a 'Isla de Guanahaní'
(atual Bahamas), onde sua frota desembarcou na manhã do dia 12 de outubro de
1492 — para contar sobre o primeiro encontro entre aqueles que já habitavam as
ilhas do Caribe e exploradores vindos de outras partes do planeta.
O encontro é narrado a partir de Colombo
em coletâneas respeitadas, como na História da América Latina organizada pelo
historiador britânico Leslie Bethell ou nos volumes de Historia de la
Conquista, escritas pelo americano William Prescott na primeira metade do
século 18. Com isso, possibilidades alternativas — como a de que os vikings da
Groelândia teriam assentado colônias no litoral do Canadá ou de que a
"grande terra, fértil e de clima delicioso" supostamente encontrada
(e descrita) por um capitão fenício do outro lado do oceano por volta de 500 a.
C. era a América — ficaram sempre às margens.
Aquele contato inédito marcaria o início
de toda a história da invasão europeia e da posterior colonização dos
territórios e povos existentes deste lado do globo e seria também o marco
inaugural de uma narrativa hegemônica até hoje em torno de uma "descoberta
da América" pela Europa.
A "descoberta" chinesa
Há quase duas décadas, no entanto, uma
história alternativa da "descoberta" das Américas se espalhou: a de
que, ao contrário do consenso historiográfico, frotas encabeçadas por dois
almirantes chineses, Zhou Man e Hong Bao, haviam navegado da África até a foz
do Rio Orenoco, na atual Venezuela, descendo depois por toda a costa do
continente até o do Estreito de Magalhães, ao sul da América do Sul, ainda no
ano de 1421 — portanto, 71 anos antes da viagem de Cristóvão Colombo. Eles
tinham sido treinados e eram liderados pelo grande navegador chinês daquela
época: o eunuco muçulmano Zheng He.
Agora, essas figuras históricas estão sendo
evocadas pela alta cúpula do governo chinês, para reafirmar as pretensões
globais da potência asiática.
A tese da 'descoberta' chinesa, cujas
versões já existiam antes, ficou famosa por meio de dois best-sellers escritos
pelo ex-comandante da Marinha britânica Gavin Menzies no começo dos anos 2000:
1421: o ano em que a China descobriu o mundo (Bertrand, 2006) e Who Discovered
America? The Untold History of the
Peopling of the Americas ("Quem descobriu a América? A história oculta da ocupação das Américas", sem tradução).
Apesar da tese ser fortemente criticada
por alguns historiadores pelo trato pouco ortodoxo com as provas históricas, a
discussão permanece em aberto entre especialistas do mundo todo. Alguns deles
afirmam hoje que, ainda que os chineses não tenham, de fato, navegado pela
costa americana antes de Colombo, é possível dizer que eles reuniam meios para
fazê-lo.
"Tecnologicamente falando, a China
tinha condições de chegar às Américas ou outras terras, e até não podemos
descartar que isso tenha acontecido. Muitos navegadores podem ter chegado nelas
e morrido no regresso ou sequer ter feito registros das descobertas. No
entanto, a questão é que a tecnologia sozinha não responde essa pergunta",
explica Rita Feodrippe, pesquisadora da Escola Naval de Guerra e estudiosa da
marinha chinesa.
"Os europeus saíram para explorar o
Atlântico porque o Mediterrâneo estava fechado e eles precisavam encontrar
novos mercados. A China, ao contrário, tinha um comércio terrestre muito bem
estabelecido com a África, com o que hoje chamamos o Oriente Médio e mesmo com
a Europa. Como há havia um relativo sucesso comercial, econômico, cultural e
migratório, não haveria necessidade de buscar novas terras — mesmo com a
tecnologia disponível", completa.
Para Vitor Ido, pesquisador do South
Centre, em Genebra, na Suíça, a reação à possibilidade de Colombo não ter sido
o primeiro a navegar pelo continente americano também diz muito sobre a
hegemonia da narrativa europeia. "Quais são as razões que parecem tornar
até inconcebível para a maioria de nós o reconhecimento de que a China poderia
ter uma superioridade tecnológica em relação aos europeus naquele período? Essa
pergunta mostra nossa maneira de pensar a história", questiona ele.
O livro polêmico de Gavin Menzies
Menzies, que morreu há cinco meses ainda
em meio às críticas dos historiadores, sustentava que, no começo do século 15,
por volta de 1403, o imperador chinês Yongle (terceiro da Dinastia Ming) deu a
Zheng He a missão de executar a maior volta ao redor do globo que já fora feita
até então. O objetivo era ir "até o fim do mundo coletar tributos dos
bárbaros espalhados pelo mar".
Ele deveria treinar navegadores para
saírem pelos oceanos enquanto, em paralelo, centenas de ba chuan, navios de
dimensões nunca vistas, eram construídos pelo império. Foram eles que, nos anos
seguintes, empreenderam seis viagens pelo planeta travando contatos com povos
distintos e alcançando terras cujas existências eram desconhecidas. O único
lugar ausente do trajeto foi a Europa. As navegações teriam continuado se, em
1424, Zhu Di não tivesse morrido, interrompendo o projeto de expansão e o contato
com outras civilizações — uma sétima viagem aconteceria em 1433, depois da sua
morte, e uma oitava frota chegou a partir depois, mas sem alcançar mar aberto.
Menzies diz no livro que, ao longo das
outras viagens daquele mesmo período, almirantes liderados por Zheng He também
pisaram no que hoje é a Austrália — 350 anos antes da expedição britânica
liderada pelo capitão James Cook, que chegou à praia de Kamay Botany Bay (hoje
um parque nacional em Sydney) em abril de 1770.
Como a maioria dos mapas originais
chineses foram destruídos por oficiais do império anos após a morte de Zhu Di,
os que restaram apresentam apenas viagens menores feitas à Índia e às outras
ilhas do Sudeste Asiático, por exemplo. Os desenhos referentes aos anos de 1421
e 1423 — quando os barcos de Zheng He teriam ido mais longe — podem ser
acessados agora, de acordo com Menzies, apenas por meio de reproduções, como
uma encontrada por ele. Feita pelo cartógrafo veneziano Zuane Pizzigano, a
reprodução mostra as ilhas de Guadalupe e de Cuba, as costas americanas, a
Austrália e até a Antártica — e que provavelmente foi usada pelo próprio
Colombo para chegar às Antilhas, diz Menzies.
Décadas depois, em 1512, o cartógrafo
turco Piri Reis projetou o mapa mundi incluindo não apenas as Américas, mas
detalhando o terreno da Patagônia, ao sul do continente. Ele só foi possível,
segundo Menzies, pelas informações obtidas décadas antes pelos chineses e já
espalhadas pelos territórios da Ásia.
Nessas viagens ausentes dos registros
originais, os navios liderados por Zheng He teriam cruzado o Cabo da Boa
Esperança antes de Bartolomeu Dias, passado por Cabo Verde, na África, pelas
ilhas dos Açores, hoje território português, pelas Bahamas (Caribe) e pelas
Malvinas. Ele teria inclusive estabelecido algumas colônias onde hoje são a
Austrália, a Nova Zelândia, a Califórnia, a ilha de Porto Rico (EUA) e o México
— para onde teria levado os primeiros cavalos. Além disso, supostamente essas
colônias foram pioneiras no cultivo de galinhas na América do Sul e na criação
de um comércio de diamantes encontrados na Amazônia com o restante do mundo.
Os livros do ex-comandante naval são
questionados principalmente pela fragilidade metodológica. "As conclusões
extraordinárias do autor são validadas apenas por suas experiências pessoais e
pelo relato que ele traz de sua luta para chegar a elas. Esse método é o que
torna possível atrair tantos leitores que, de outra maneira, jamais abririam um
livro de 500 páginas cujo assunto são os empreendimentos marítimos chineses e a
exploração europeia", diz Robert Finlay, professor emérito de História
Mundial da Universidade de Arkansas, nos EUA.
Há ainda críticas às provas utilizadas
por ele: em uma extensa análise da obra de Gavin Menzies, o historiador e
oficial da Marinha portuguesa, José Manuel Malhão Pereira, e o professor Jin
Guoping, especialista em relações lusitanas na China, apontam incoerências que
vão das correntes de ventos às coordenadas astronômicas usadas pelos almirantes
chineses, passando por erros graves de análise cartográfica — o mapa de Piri
Reis, por exemplo, descreve ilhas da África, não do Caribe. Segundo eles, o
autor dos best-sellers não apenas tentou "enganar os leitores" como
deturpou diversas provas históricas para construir sua argumentação.
Mas há reações ainda menos amistosas,
como a de um professor de Cingapura que, na ocasião da "Exibição
1421", organizada na marina da cidade-Estado em 2005 pelo próprio Menzies
a convite do governo local, chamou o livro de "lixo".
Um mapa antigo
A tese de que os chineses chegaram às
Américas antes de Colombo, no entanto, nunca morreu: em 2006, um advogado
chinês chamado Liu Gang afirmou à imprensa internacional que tinha encontrado
um objeto que a comprovava: um mapa com os cinco continentes do planeta feito
em 1763, mas com uma anotação no verso dizendo ser uma reprodução de outro mapa
de 1418. O mapa foi comprado por um valor irrisório em uma livraria de Xangai
anos antes e Gang dizia que passara aquele tempo estudando a cartografia com
outros especialistas. Ele chegou a uma conclusão parecida como a de Menzies:
"A informação contida no mapa pode mudar a história", disse Gang.
Em 2014, outra evidência das descobertas
marítimas chinesas surgiu: durante uma expedição à remota ilha de Elcho, na
Austrália, uma equipe de arqueólogos do país encontrou uma moeda da Dinastia
Qing prensada entre os anos 1735 e 1795. À época, Mike Owen, chefe do trabalho
de escavação, chegou a dizer que o objeto aumentava os já fortes indícios de
que chineses haviam feito contato com aborígenes da região antes de Cook.
Para Júlia Rosa, que fez mestrado em
Estudos Chineses Contemporâneos na Universidade de Renmin, em Pequim, e é
cofundadora da plataforma Shūmiàn, a grande questão desse debate também gira em
torno das possibilidades chinesas no período.
"Por um lado, a dinastia estava
envolvida em projetos de expansão e de exploração de novos mercados para
comércio e, por outro, tinha tecnologia para isso, já que a literatura afirma
que os navios chineses daquela época eram melhores que os italianos. Assim, se
eles soubessem que poderia haver uma terra desconhecida do outro lado do mundo,
é possível que teriam tentado alcançá-la", explica.
"Além disso, há certo consenso de
que a China era mais avançada do que a Europa tecnologicamente até o século 14
aproximadamente", completa.
Rita Feodrippe argumenta que, de fato, a
indústria naval da China era uma das mais avançadas do mundo até antes do
século 15. "Há muitas fontes históricas que mostram que a China chegou ao
século 15 com programas e políticas específicas para seu desenvolvimento naval
a nível local, isto é, queria navegar pelo Oceano Pacífico e fazer trocas
comerciais com os povos do Sudeste Asiático", explica ela.
O "retorno" de Zheng He
Há três anos, o nome de Zheng He voltou
a sair da boca de um governante chinês: foi durante o discurso de abertura do
atual presidente, Xi Jinping, no primeiro Belt and Road Forum (BRF) — evento em
que delegados de mais de uma centena de países se reuniram em Pequim em 2017
para discutir projetos de infraestrutura financiados pela China pelo mundo.
Na ocasião, Xi Jinping afirmou que Zheng
He foi um dos "pioneiros chineses que entraram para a história não como
conquistadores, com navios de guerra, armas ou espadas. Ao contrário, eles são
lembrados como emissários amigáveis em caravanas de camelos e navegando em
navios repletos de tesouros. De geração a geração, esses viajantes das rotas da
seda construíram uma ponte para a paz e cooperação entre o Ocidente e o
Oriente".
Segundo Júlia Rosa, a menção do
presidente chinês não foi trivial: em um contexto de disputa geopolítica e de
reafirmação no cenário global, com a construção de portos e estradas em países
da África, da Ásia e da América Latina, o navegador do século 15 coloca uma das
dinastias mais gloriosas da história da China em diálogo com as pretensões
atuais do Partido Comunista — que governa o país desde a metade do século 20.
"Como na dinastia Ming havia uma
participação intensa da China para além do seu território, não necessariamente
em conflitos bélicos, mas em trocas comerciais com seus vizinhos. Zheng He é
alçado como a figura que ilustra as pretensões da China de hoje: se engajar com
outras populações por meio de trocas positivas, de ganhos mútuos, de comércio
pacífico", explica.
"Assim, Zheng He é um exemplo usado
para dizer que a China já realiza esse tipo de contato com outros povos há
muito tempo", completa Rosa.
Vitor Ido, do South Centre, conta que a
retomada de símbolos nacionais, como Zheng He, também faz parte de outra
ambição chinesa. "O país tem feito isso também com Confúcio, por meio do
Instituto Confúcio, para expandir o chamamos de soft power, mesmo que o governo
tenha uma interpretação muito específica do confucionismo, assim como da
história do Zheng He. Esse processo todo, de qualquer forma, me parece muito
importante na China contemporânea".
Para Rita Feodrippe, o navegador chinês
é o símbolo perfeito de um país que, nas geopolítica atual, enxerga no mar o
principal caminho para seu desenvolvimento econômico.
"Desde a entrada da China na OMC
(Organização Mundial do Comércio), em 2001, houve uma ressignificação do mar.
Eles não queriam depender de empresas de navegação ou usar rotas marítimas que
são controladas financeiramente por potências ocidentais e, para isso,
desenvolvem toda uma indústria naval e seu entorno para garantir o principal:
importar e exportar muito e da forma mais barata possível. A associação com
Zheng He está aí: era um chefe naval que liderava embarcações com capacidade
para levar grandes mercadorias, mas não exércitos, para outros lugares do
mundo", analisa.
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