A proposta de Biden para a Amazônia e
por que ela irritou Bolsonaro
Bolsonaro usou cúpula da ONU sobre
biodiversidade para rebater candidato presidencial americano e falou em uma
suposta ‘cobiça internacional’ pela Amazônia, repetindo termo que já havia
usado no Twitter.
Por BBC
30/09/2020 19h21 Atualizado há 12 horas
O desmatamento na Amazônia foi o ponto
que levou o Brasil a ser citado no debate entre os candidatos à Presidência
americana Joe Biden e Donald Trump, na noite da terça-feira (29).
Biden disse que "começaria
imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões
para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia".
"(A comunidade internacional diria
ao Brasil) aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não
parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas", afirmou
Biden no debate.
A declaração gerou uma resposta imediata
e revoltada do presidente Jair Bolsonaro, que classificou o comentário como
"lamentável", "desastroso e gratuito" e fez uma série de
postagens críticas a Biden no Twitter.
O brasileiro também usou a cúpula da ONU
sobre biodiversidade para rebater o americano e falou em "cobiça
internacional" pela Amazônia.
Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo
Salles, ironizou a proposta e questionou se o valor da ajuda seria anual.
Entenda a proposta de Biden e por que
ela irritou o presidente brasileiro.
O fato do candidato democrata Joe Biden
tocar no assunto dos altos índices de desmatamento e as queimadas na Amazônia
brasileira reflete a atenção cada vez maior do ocidente ao aquecimento global e
à questão ambiental, explica Oliver Stuenkel, professor de relações
internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A destruição da floresta tem, desde o
ano passado, gerado grande preocupação internacional.
O Brasil já recebeu ajuda financeira
externa para criar programas de combate ao desmatamento e de preservação da
floresta, como o Fundo Amazônia, lançado em 2008 como o maior projeto da
história de cooperação internacional para a preservação da floresta.
O fundo era financiado majoritariamente
pela Noruega e pela Alemanha, que anunciaram em 2019 a suspensão dos repasses
diante do aumento no desmatamento e da política ambiental do governo Bolsonaro.
"Uma eleição de Biden poderia levar
os EUA a adotarem uma postura em relação ao Brasil mais parecida com a da
Europa, onde há um movimento para que o acordo comercial (com o Mercosul) seja
condicionado à não destruição da Amazônia. É um reflexo da crescente
preocupação com o meio ambiente na política ocidental", afirma Stuenkel.
"Os EUA poderiam ter uma postura
mais dura contra o governo Bolsonaro, que neste momento é visto como grande
vilão global do meio ambiente."
Bolsonaro reagiu à fala de Biden,
dizendo que "o Brasil mudou. Hoje, seu Presidente, diferentemente da
esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas
ameaças".
"Nossa soberania é
inegociável", completou Bolsonaro, e citou também uma suposta "cobiça
internacional pela Amazônia".
A proposta de Biden de organizar um
financiamento para o Brasil em nenhum momento questionou a soberania
brasileira, avalia Stuenkel. "A ideia de que existem grupos querendo
'roubar a Amazônia' é antiga em alguns grupos, mas é algo que não existe. É uma
coisa que em relações internacionais chamamos de 'paranóia da Amazônia'",
afirma.
"Faz parte dessa narrativa de que o
Brasil está isolado e que há um grupo lá fora que quer destruí-lo. É um
discurso de que há um 'inimigo externo', que foi inclusive usado pela ditadura
militar, e que é conveniente para o governo Bolsonaro, porque pode justificar
todo tipo de medidas de exceção."
O analista político Creomar de Souza,
CEO da consultoria de risco político Dharma, concorda com a avaliação de
Stuenkel e diz também que a citação de soberania e afirmação de que "essa
presidência não se subordina" é "extremamente contraditória diante da
postura do governo Bolsonaro em relação aos EUA".
Recentemente, veio a público um vídeo do
presidente Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial dizendo ao ex-vice-presidente
americano Al Gore queria "explorar os recursos da Amazônia com os
EUA", ao que Gore responde que não entendeu.
Na cúpula da biodiversidade da ONU,
Bolsonaro voltou a citar a ideia de "cobiça internacional" pelo bioma
brasileiro, dizendo que o seu governo está combatendo o desmatamento e
"problemas que favorecem as organizações que, associadas a algumas ONGs,
comandam os crimes ambientais no Brasil e no exterior".
O presidente já repetiu diversas vezes a
alegação de que incêndios são causados por ONGs, sem jamais apresentar nenhuma
prova.
Irritação presidencial
No entanto, Stuenkel afirma também que a
reação "bastante agressiva e defensiva" de Bolsonaro é muito menos
relacionada à proposta de Biden em si e muito mais uma tentativa de manter
apoio em sua base.
"Não tem nada a ver com a
soberania, é uma questão de engajar seus eleitores", diz o professor de
relações internacionais.
"Essa reação gera muito apoio entre
seus seguidores mais radicais e entre uma parte do eleitorado que tem um
interesse direto nessa desregulamentação do ambiente, como grileiros,
madeireiros etc.", afirma Stuenkel.
"Por enquanto, o custo da pressão
internacional é menor do que abrir mão do apoio desse grupo interno",
afirma Stuenkel.
Creomar de Souza afirma que o
"posicionamento de política externa do Bolsonaro não tem como preocupação
direta a política externa, mas o interesse de fazer uma plataforma eleitoral
continuada".
"Ou seja, ele quer sempre engajar e
resgatar o apoio de seu eleitorado. Dá para ver como ele quer agradar o seu
eleitor típico ao colocar nas falas a comparação com outros momentos da
história, com outros governos, citar a esquerda", diz Souza.
Como fica a relação com os EUA se Biden
vencer a eleição?
Em certa medida, afirma Creomar de
Souza, a fala de Biden segue a mesma lógica da de Bolsonaro em ser voltada para
os eleitores internos.
Ele afirma que todo o debate "foi
direcionado para apelar para as preocupações dos eleitores democratas com o
ambiente e incentivá-los a sair de casa para votar" — o voto não é
obrigatório nos EUA.
Apesar da forte retórica do presidente
Bolsonaro contra Biden, recentemente o embaixador brasileiro em Washington,
Nestor Forster Junior, afirmou que independentemente de quem vença o Brasil vai
continuar a manter boas relações com o país.
Uma relação pragmática e não tão hostil
entre os países mesmo com a vitória de Biden é possível, afirma Stuenkel, mas
pode ser complicada pela relação de Bolsonaro com Trump.
"Embora uma vitória de Biden vá
levar a uma postura mais dura, é possível que ela nem seja tão dura quanto a
europeia, já que a maior preocupação de Biden é a crescente influência da China
no continente e não o ambiente — e o governo Bolsonaro é visto como possível
aliado para conter essa influência", diz Stuenkel.
"No entanto, Bolsonaro e Trump com
certeza vão manter contato, e ter um presidente brasileiro ativamente apoiando
a oposição nos EUA pode complicar uma tentativa Biden de ter uma relação
pragmática com Brasil."
Stuenkel afirma que outra variável é a
avaliação do governo Bolsonaro de se vale a pena "dobrar a aposta" e
continuar com uma retórica defensiva diante de uma possível crescente pressão internacional.
"Se Biden ganhar e fizer uma
aliança com a Europa para pressionar pela preservação do ambiente, o custo da
pressão externa (para Bolsonaro) pode ser maior do que o ganho retórico entre
seus eleitores mais fiéis", diz.
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